Fernando Pessoa é, sem dúvidas, o maior nome da poesia portuguesa no século XX. Mas seu legado destaca-se pelo uso magistral da heteronímia na sua obra poética. Seus heterônimos não cobriram o seu nome e, dentre eles, três destacam-se: Álvaro de Campos (o futurista), Alberto Caeiro (o mestre campestre) e Ricardo Reis (o classiscista). Ainda é possível destacar Bernardo Soares, semi-heterônimo, autor de "Livro do Desassossego".
Mas já são mais de 120 heterônimos (completos ou incompletos) detectados em toda sua obra.
Mesmo com esse retrospecto, ainda é estranho crer que Fernando Pessoa, o poeta português, tenha criado um heterônimo feminino, mas, sim, ele escreveu usando um eu-lírico feminino e com um nome impossivelmente mais comum: Maria José.
E Maria José aparece na obra pessoana através de um texto de sensibilidade arrebatadora: "A carta da corcunda para o serralheiro". O texto assume o formato proposto no título e começa com um tom de despedida, de última carta - o lamento por existir, tão comum na obra do poeta.
"O senhor nunca há de ver esta carta. Nem eu a hei de ver pela segunda vez, porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe, ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo."
A autora da carta constantemente se retrata do que disse, impondo sua condição "gauche", sua posição de "ninguém" (ela diz: "sou doente, e nunca tive alma"):
"Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela, mas não tenho ciúmes de ti, porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes."
Pessoa trata calculada e poeticamente do amor platônico e do valor desse amor. Maria José, mulher corcunda que vive debruçada sobre a janela a observar a rua, vincula sua insipiente felicidade à passagem do serralheiro pela rua.
"O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim, como se gosta das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém."
Ainda na introdução, Maria tenta apresentar-se e não consegue desvincular sua imagem da imagem que os outros constroem sobre ela. "Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém.".
A carta é constantemente hesitante. As correções a si própria dão conta da incerteza e inexperiência da corcunda no campo dos sentimentos e das palavras. Pessoa surpreende no uso da ingenuidade e na ironia com os sentimentos de Maria, esse traço fica bem explícito no seguinte trecho:
"Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar."
No escrito de Pessoa, até os ninguéns amam. Seria essa - nas palavras de Bernardo Soares - a traição ao próprio ser. E ainda os ninguéns são tão nulos que até a morte lhes é negada.
"Eu, às vezes, dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria..."
Maria reveste-se de sua visão coitadista e Pessoa parece ironizar constantemente o sentimento puro de Maria, a dependência causada pelo amor, o condicionamento da felicidade a um outro alguém. E o serralheiro, imagem sugerida na carta, não chega a ser um deus, mas um homem absolutamente comum - só não é comum para a corcunda da janela.
"Se o senhor soubesse isto tudo, era capaz de de vez em quando me dizer adeus na rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai, se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso."
O fim da carta fala por si só... A carta com destinatário, mas que nunca chegará ao seu destino. À corcunda importa apenas que seja escrita para não "abafar". Afinal, Pessoa revê a importância das cartas de amor - num outro heterônimo tratadas como "ridículas".
"Adeus, senhor Antonio, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a ti. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir, porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aqui tem e estou a chorar.
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