A máquina mística
Mais um ano outra vez
já lá vão quarenta e três
a minha vida é um desastre
nada há nela que me baste.
Poeira negra, silvo de automóvel,
hemorragia de árvores na resina
que dá verniz a insigne Prémio Nobel
e que liberta odores a gasolina
invadindo as paredes do harém
onde o bom sexo é o maior bem.
A minha vida é um desastre
nada há nela que me baste.
Fábrica fumarenta dos espíritos
por sobre as águas negras do canal.
Um proletário perde-se em inquéritos
como quem anda muito mal.
E o calor derrete o aço,
ao mundo falta-lhe o espaço.
Mais um ano outra vez
já lá vão quarenta e três.
Trago comigo plásticas ideias
e dezenas de indústrias satisfeitas.
A vida nas cidades europeias
começa à hora em que te deitas.
Anos falidos no desgaste,
nada na vida que me arraste.
Nada há nela que me baste
a minha vida é um desastre.
Dois cabelos eléctricos na face
irrequietos giram como hélices:
paisagem de helicópteros e guindastes
que me confundem e só dão chatices.
Liras metálicas e loiros trastes,
cordas de Orfeu prendendo Eurídice.
Já lá vão quarenta e três
mais um ano outra vez.
No Titanic alguém me disse:
falta-me o óleo da sobrevivência.
Corpos e porcos, Circe sobre Ulisses
como quem come sem decência.
Maré evanescente, a verga tesa
o herói exibe sobre a mesa.
A minha vida é um desastre
nada há nela que me baste.
Micromáquinas dentro de voz dúbia
que ao longe ouvimos pela telefonia.
Raros vestígios de vetusta múmia
alimentando todas as fobias.
Lenços pousados sobre a estante,
com que limpo as tristezas e o sangue.
Mais um ano outra vez
já lá vão quarenta e três.
Cavalo místico na mão de Goya,
em louco trote sobre milhares de anos.
Andam comigo nos anais da história
cavalos que explodiram por engano,
de míssil que lançaram americanos
do Golfo Pérsico directo a Tróia.
A minha vida é um desastre
nada há nela que me baste.
A tv apresenta um bom programa
e o bom deus caminha no jordão.
Desprezo o zapping, deito-me na cama,
como tremoços, adiro à religião.
O Newton e a trotinete azul
entram no ecrã vindos de Cabul.
Já lá vão quarenta e três
mais um ano outra vez.
O primitivo aedo acende a lãmpada
que dá ao quarto um ar de apoteose.
Metralha e parafusos, gozo e manta,
muita cerveja em excessivas doses.
Celeste dia que desmente Einstein
e arruina a herança de meu pai.
Mais um ano outra vez
já lá vão quarenta e três
a minha vida é um desastre
nada há nela que me baste.
Luís Adriano Carlos
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