O dia em que eu... vi os Velvet Underground
Em 1993, Rui Miguel Abreu apanhou os Velvet Underground em Londres. Oportunidade irrepetível para dar de caras com um mito.
Gosto da perspetiva que este presente oferece sobre o passado que já lá vai e o futuro que está para chegar e nunca fui nem dos que gostavam de ter sido cavaleiros na corte do rei Artur ou membros da entourage dos Rolling Stones em 68 nem dos que sonham acordados com o dia em que possam apanhar o 751 para Júpiter ou ir de férias para um qualquer planeta paradisíaco com um simples "beam me up, Scotty!". Gosto do aqui e agora (às vezes mais do "aqui" do que do "agora", é verdade...), mas até um tipo pragmático como eu pode ter as suas fraquezas. E uma das minhas fraquezas em tempos passava pela Nova Iorque de Andy Warhol e dos Velvet Underground: gostava de ter visitado a Factory em 1966, de ter estado entre o público do Exploding Plastic Inevitable, de ter testemunhado o poder dos Velvet Underground nessa época. E isto porque aquela música sempre me pareceu mais do que um conjunto de impulsos elétricos gravados nos sulcos de discos de vinil. Havia um claro lado ritualista, teatral, performativo desvendado pelas lendárias atuações ao vivo de Lou Reed, John Cale, Sterling Morrison e Maureen Tucker, mais Nico e todo o circo de "freaks" montado por Warhol, com projeções de cinema e de slides de óleo, mais luzes e chicotes e agulhas hipodérmicas gigantes... Uma festa.
Em 1990, começou a desenhar-se uma hipótese de ver esse sonho realizado, pelo menos de forma parcial. John Cale e Lou Reed gravaram e editaram a homenagem a Andy Warhol Songs For Drella e depois, em Paris, na Fundação Cartier, os dois homens fortes dos Velvet interpretaram "Heroin" e mais alguns temas que viriam a encontrar lugar no bootleg Paris 1990 . Em 1993, o grupo cedeu finalmente à história e juntou-se para uma série curta de concertos. Tocaram em Edimburgo, em Paris (de onde saiu a gravação que daria origem a Live MCMXCIII ), fizeram alguns primeiras partes dos U2, e apresentaram-se na Wembley Arena em junho de 1993. Foi esse o concerto que apanhei e sobre o qual escrevi as linhas que se seguem, nas páginas do Se7e:
"O concerto dos Velvet, no último domingo, em Londres, foi mesmo brilhante. Lou Reed, Maureen Tucker, John Cale e Sterling Morrison juntos como nos velhos tempos. Juntos e ao vivo. Sinceramente, penso que a chama está intacta", escrevia eu depois de me interrogar sobre o que poderia ter Lester Bangs pensado de tal reunião. "Tudo abriu com "We're Gonna Have a real Good Time Together", espécie de aviso prévio para a requisição civil que se seguiu. Logo depois, com "Venus In Furs" entrámos no território dos mitos apenas para sermos imediatamente devolvidos a este planeta com o pontapé dos arranjos. Isto serve para alertar os cardíacos defensores da imutabilidade: os novos arranjos para os eternos clássicos dos Velvet podem provocar uma crise na aorta dos mais sensíveis. Como pessoas inteligentes que são, os Velvet Underground pegaram no passado de cernelha e fizeram-no curvar-se ao presente".
Expliquei depois que Cale foi o multi-instrumentista de serviço e que ficaram a seu cargo as canções que originalmente contaram com a voz de Nico. Sobre Maureen Tucker escrevi que foi "económica como um judeu em véspera de reforma e certeira como Miguel Sousa Tavares", garantindo que "foi dela grande parte da noite". Referi a "massa bruta de força, energia e extrema coesão", notei que Lou Reed estava "cheio de vontade de tocar guitarra descontroladamente" e falei da afinação alternativa de Cale. "É certo que os Velvet já não tocam de costas voltadas para o público, já não usam óculos escuros, nem seringas ou outras ferramentas hipodérmicas em palco. Mas não se perdeu nada". "Falta dizer", concluía depois de apontar o álbum ao vivo que já se anunciava como documento desta digressão, "que os Velvet assinaram o melhor concerto de rock que já vi. Poderoso, inventivo e corrosivo. Com a dose certa de eletricidade para acordar da letargia qualquer saudosista da década de 60. Suficiente para que Lester Bangs, que está com certeza a escrever fanzines na Quinta Dimensão, faça uma edição especial só com eles".
Nunca fui grande adepto das reuniões, precisamente por achar que tudo tem o seu tempo e lugar, mas na impossibilidade de realinhar as minhas moléculas à porta da Factory em 1966, abri uma exceção e cumpri esse sonho em Londres. E em boa hora o fiz... Sterling Morrison morreu dois anos depois e Maureen Tucker parece ter aderido ao Tea Party sendo uma feroz crítica de Obama e das políticas que acredita estarem a conduzir a América ao socialismo... Esta senhora, no entanto, tocou bateria de pé para os Velvet Underground. Eu sei bem. Ainda a consegui ver...
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