sábado, 2 de julho de 2011

O dia em que eu... me apaixonei por "Lay Lady Lay" de Bob Dylan

O dia em que eu... me apaixonei por "Lay Lady Lay" de Bob Dylan [crónica de Rui Miguel Abreu] -

O dia em que eu... me apaixonei por "Lay Lady Lay" de Bob Dylan

Ou os mistérios das canções que nos assombravam - ainda assombram? - antes da era da televisão por cabo e da internet.

Bob Dylan lançou o álbum Nashville Skyline em Abril de 1969, um mês antes de eu nascer. Nesse álbum há várias canções extraordinárias, a começar logo no tema de abertura, "Girl From The North Country", que Dylan interpreta ao lado de Johnny Cash. Mas há nesse disco uma outra canção que me assombrou durante anos e que ainda hoje considero ser uma das mais incríveis canções de sempre: "Lay Lady Lay".
Lembro-me do primeiro carro dos meus pais e de longos passeios de Coimbra até à Figueira da Foz ou até à Serra do Buçaco. O rádio ligado era uma constante nessas viagens. Hoje, esse tipo de percursos faz-se por auto-estradas e de forma muito rápida, mas na época essas viagens pareciam demorar uma eternidade, sobretudo os regressos a casa ao final do dia. O rádio funcionava por isso mesmo como uma distrcção, como o modo perfeito de complementar o lento desenrolar da paisagem a partir da janela do carro. Numa dessas viagens, ouvi um dia uma canção cuja melodia me agarrou sem pedir licença. Isso há-de ter acontecido por volta dos meus 10 anos, quando comecei a descobrir a música de uma outra forma, a perceber que as canções podiam despoletar emoções e sublinhar momentos de forma quase perfeita. Foi o caso, quando esse tema de Dylan apareceu na rádio.
Era de noite e "Lay Lady Lay" surgiu quase no final da viagem de regresso a casa, perfeito remate para um dia cheio de azul de mar ou de verde de serra, já não consigo precisar, mas certamente feliz como foram a maior parte dos meus dias de infância. Fiquei tão arrebatado pela canção que despertei do embalo do carro e coloquei-me em posição de alerta para não deixar escapar o nome que o locutor deveria certamente dizer daí a nada. Só que o meu pai, que não tinha percebido que eu estava a aguardar ansiosamente que o locutor falasse, estacionou o carro e desligou o motor, desligando também o rádio. Quando lhe implorei que o voltasse a ligar, já o locutor estava a anunciar a próxima canção. Não descobri nesse dia quem era Dylan ou que o tema em causa tinha por título "Lay Lady Lay".
Apesar de nas semanas seguintes ter andado atento ao programa em que tinha ouvido aquela canção, não a voltei a ouvir. Anos mais tarde voltei a cruzar-me com ela por instantes, de novo na rádio, mas mais uma vez não consegui perceber nem o nome do autor nem o título da canção. Mas por alguma razão, na minha memória gravei a melodia, o refrão e parte da letra - ou pelo menos o que eu entendia ser a letra: não esquecer que os Everly Brothers recusaram a canção oferecida por Dylan antes da edição de Nashville Skyline por terem pensado que ele cantava " Lay lady lay / Lay across my big breasts, babe ", equívoco só comparável ao de quem pensava que Hendrix cantava "E xcuse me while I kiss this guy "... Talvez eu já soubesse que a vida dá voltas e que é sempre possível voltarmos a cruzar-nos com certas canções noutras curvas da vida. E assim foi.
Anos mais tarde, em 1990, já nestas andanças do jornalismo musical, recebi para crítica uma caixa antológica de quatro CDs dos Byrds. A meio do terceiro CD tive uma enorme surpresa e reconheci "Lay Lady Lay" como a canção que procurava há anos. Percebi imediatamente que aquela era uma outra versão, mas a ficha artística do disco permitiu-me chegar muito rapidamente até ao autor e daí até à sua gravação original de "Lay Lady Lay". Poder finalmente ter essa canção em meu poder significou acrescentar à minha colecção uma espécie de cápsula do tempo e ouvi-la leva-me sempre até ao banco de trás do primeiro carro dos meus pais, a minha primeira janela para o mundo, muitos anos antes da internet, da TV por cabo e de todas essas coisas.
A minha filha hoje não teria esse problema. Terá certamente no seu telemóvel uma aplicação que desvenda automaticamente estes mistérios e que não só lhe revela o título e os autores das canções que lhe captam a atenção, como provavelmente lhe coloca a opção de compra à distância de um simples click... Ainda haverá canções capazes de nos perseguirem e assombrarem assim durante tanto tempo neste tempo sem segredos?

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