sábado, 26 de maio de 2012

a mulher fatal na poesia

 

 

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Se para as artes fogem as intrigas que remoemos, poucos temas se mostraram sempre intrigantes e recrudescedores que o da mulher que, não fazendo parte da ética ou da bondade moral, se revela cruel, demoníaca, apavorante para, por fim, ser irresistível.

Na literatura clássica brasileira são vários os autores e obras que abordam a temática da mulher bestializada que por hora inspira fuga para, em outras, inspirar realmente o desejo. Os comportamentos ambíguos perante elas são muitos, ainda que no Romantismo é que tenham ficado mais patentes.

A professora francesa da Universidade de Toulouse-le-Mirail, Mirelle Dottin-Orsini, em A mulher a que eles chamam fatal vai traçar o panorama do cenário europeu em relação à mulher (passando pela concepção visceral do assunto por Bauldelaire): viam mulheres em toda parte, diz. As artes plásticas não se furtaram em multiplicar o ícone da mulher – idealizada, mas mulher – em todas as formas e representações de idéias, da Tecnologia ou da Ciência. Mas a reprodução excessiva não a tornava mais familiar segundo a autor, ao contrário, agia quase como um exorcismo. A partir da segunda metade do século XIX, a mulher não é mais a Musa, a Madona; ela agora provoca terror; é a filha de Satã, Eva pecadora, uma afronta em suas liberdades cada vez mais amplas.

É o início de uma mitologia que cultua esta entidade misteriosa e sedutora, que pode matar, que é ávida por sangue. Por vezes confunde-se com a figura da megera, talvez não tão favorecida de belos atributos, mas igualmente letal. Esta figura feminina mitológica é aquela que estraga a vida do homem, uma a depravada de imoralidade contagiosa, uma beldade de nefasto poder.

Com o tempo, o mito vira clichê e torna-se simplesmente um chamariz à venda de histórias, mas já está aceito e enraizado - guardando muito de sua essência original - nas escolas literárias brasileiras, tão influenciadas pelos conceitos europeus que faziam já parte de nossa cultura.

Em Álvares de Azevedo, a segunda fase do Romantismo, explora o caráter dual que teria esta mulher fatal: ao mesmo tempo suave e demônio. Destrói de forma sorridente, tortura o poeta com escárnios, mas este prossegue apaixonado.

(...)

Era mais bela! O seio palpitando...

Negros olhos as pálpebras abrindo...

Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!

Por ti – as noites eu velei chorando,

Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!

Já em Castro Alves, a mulher fatal já está muito perto do inferno. Entrega-se à luxúria seduzindo a todos sem pudor, alimenta-se do sofrimento do que a ama, é o protótipo da vampira que fere muito além da troça; ataca a moral ignorando-a simplesmente, é fria e cruel diante do sofrimento do outro. Em Fabíola, ela é realmente essa assassina lasciva que rega as plantas com o sange do que deveria ser seu bem-amado:

Como teu riso dói... como na treva

Os lêmures respondem no infinito:

Tens o aspecto do pássaro maldito,

Que em sânie de cadáveres se ceva!

Filha da noite! A ventania leva

Um soluço de amor pungente, aflito...

Fabíola!... É teu nome!... Escuta é um grito,

Que lacerante para os céus s'eleva!...

E tu folgas, Bacante dos amores,

E a orgia que a mantilha te arregaça,

Enche a noite de horror, de mais horrores...

É sangue, que referve-te na taça!

É sangue, que borrifa-te estas flores!

E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!

Também o conhecidamente frio poeta parnasiano foi vitima desta mulher sedutora mesmo entre os panteões gregos. Em Messalina, Olavo Bilac nos apresenta uma mulher uma mulher que vive entre as ruínas, imperiosa, nobre sobre toda a destruição que a orgia ao redor provoca. Messalina figura poderosa, fascina por sua beleza, sua libertinagem e pelo sangue que derrama, amedrontando.

Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias

Do passado. Minh'alma se transporta

À Roma antiga, e da cidade morta

Dos Césares reanima as cinzas frias;

Triclínios e vivendas luzidias

Percorre; pára de Suburra à porta,

E o confuso clamor escuta, absorta,

Das desvairadas e febris orgias.

Aí, num trono erecto sobre a ruína

De um povo inteiro, tendo à fronte impura

O diadema imperial de Messalina,

Vejo-te bela, estátua da loucura!

Erguendo no ar a mão nervosa e fina,

Tinta de sangue, que um punhal segura.

Em Augusto dos Anjos encontramos a mulher fatal misturada aos traços chocantes que caracterizaram sua obra, como a exploração intensa do orgânico, do animal...tudo a ponto de provocar mesmo nojo aos caríssimos leitores. Em Versos íntimos, a figura feminina é destruidora por seu abandono violento, ela rejeita ferozmente o poeta não parecendo demonstrar sensibilidade alguma. Mas ainda que liricamente esbraveje impropérios contra ela, é possível identificarmos que a ingratidão e o abandono não foram suficientes para demover o eu-lírico da sedução que a mulher provoca. Torna-se um ícone o dizer: o beijo, amigo, é a véspera do escarro

Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão - esta pantera -

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

Assim, a mulher fatal pôde estar fortemente no imaginário literário brasileiro, em suas mais diversas facetas, todas destruidoras, assim como ocorrido na Europa. Concluindo com a mesma Dotin-Orsinni: a imagem da mulher fatal, complacente e gratificante no plano da arte, cristaliza de maneira espetacular a ambivalência da atitude masculina diante do feminino (e até aqui nada de novo): fascinação e repulsa, adoração submissa e ódio agudo (poderíamos dizer histérico?), desejo de aconchego e terror incontrolável.

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