Como é a casa onde você mora? A última pergunta que fiz à Gaëna, não estava exatamente no lugar certo, estranhamente. O essencial foi por último na nossa conversa, isso talvez porque eu já pensasse conhecê-la bem, além dos dados de endereços ou profissão – essa última, ela nunca me disse. Entre os meses de Maio e Abril, a canadense Gaena des Bois e eu trocamos cartas eletrônicas onde ela falou sobre seu trabalho apaixonado como fotógrafa de universos sonhados.
Por aqui, a neve está derretendo nas montanhas, diz ela em uma das mensagens. Faço algum esforço para imaginar a cena enquanto no Rio de Janeiro o calor mal permitia ficar muito tempo em casa sem ligar o ventilador. Gaëna mora numa casa entre as montanhas na província de Quebec. Gentil e pacientemente, ela respondeu às minhas questões e comentários insanos escritos em um inglês sofrível; melhor que o francês, que arrisco apenas cinco frases. Eu quase esqueci de te dizer que, por parte de mãe, tenho uma pequena porção de sangue português correndo nas veias. Combinamos trocar aulas de línguas e fomos às suas peças.
Conheci seu trabalho ano passado navegando sem objetivo pela internet. Desde então, me tornei assídua visitante do seu charmoso blog, onde Gaëna publica quase diariamente uma fotografia editada seguida por um pequeno poema seu ou de outros, arrematados quase sempre por uma canção dos Charles Trenet ou Aznavour.
Carregadas de uma peculiar passionalidade feminina, as imagens de Gaëna têm como temática-base a natureza, viva ou em modo still life, essências naturais. Cada captura que faz é violentamente interceptada por um mundo ilusório que lhe deixa à mostra novos lados, luminosos ou escuros. Isso consegue através de suas edições, parte crucial de cada peça, onde a foto é manufaturada e se torna imagem. É desse modo que elas passam a dizer sobre coisas que não estavam antes ali, ao menos não de modo perceptível. Num flerte entre as palavras, as estórias e as imagens, Gaëna busca revelar os sentidos existentes além do que comparece concreto nas coisas ou nos corpos.
Primeiro, o que vem antes: escrever ou fotografar? Você poderia contar um pouco sobre como essas duas coisas se organizam na sua mente e qual a relação entre as suas imagens e a sua poesia?
Desde que me lembro, eu olhava para o mundo como se fosse através de uma janela, de uma moldura. Como uma pintura em movimento. Uma obra de arte pode vir de várias inspirações; desde o lado mais leve e luminoso, até o lado mais obscuro e o escoar dos dias. Todas as minhas memórias são imagens. Sempre procurei, percebi, imaginei histórias, perfumes e tons através de imagens. Quando comecei a escrever, desenhava imagens com as palavras... Costumo dizer que, mesmo nas minhas palavras, eu faço imagens e é assim que eu sinto as coisas.
Gaëna, você parece criar sempre um mundo onde tudo parece imaginado, mas essa imaginação sempre está existindo nas coisas concretas, nas paredes, nos guarda-chuvas, nos carros. Você costuma falar muito sobre a sua cidade, mas por vezes ela me parece ser uma cidade fantástica, um lugar além do lugar. Estou sendo muito besta? (risos) Como acontece? O que os seus olhos estão procurando?
Eu sou muito instintiva e gosto de tudo por mim mesma. Aqui é um país onde eu me aventuro sem saber às vezes por onde em termos concretos, mas com a certeza de que desconheço alguma coisa e de que alguma coisa pode acontecer pela exploração, pela transformação. Isso é algum tipo de mágica interna (risos)
Bem, há muitos modos de se viajar com as imagens. Pessoas. Paisagens humanas. Veja, tirando um pouco de tempo para explorar as pessoas, aprendendo a conhecer a humanidade, e então ouvi-la com os olhos. Continuam sendo... impressões. Um pouco como em “Wings of Desire” do Wim Wenders, sabe? Ouvindo as pequenas vozes das pessoas. A única que vem de dentro pela apreensão do momento presente, "a plot of time". Olhar, tocar, cheirar talvez, a solidão que está em todas as pessoas. Você sabe, solidão. Não podemos fazer nada a respeito. Constante, momentânea, efêmera, permanente... E suas expressões estão nos mais ínfimos movimentos do corpo. Ah..! Tantas coisas...
Digo isso também pelas suas edições, me parecem falar de visões escondidas. Algumas vezes penso estar me lembrando de sonhos que tive. É uma sensação forte de que estou acordando pela manhã e começo a me lembrar sobre o que sonhei. Me fale dessas insanidades...
As minhas imagens são o meu abrigo. Tenho prazer em saber como, Ao farejar, ao ouvir, que esse abrigo também se torna um para os outros. O outro que viaja, talvez, nas asas dos meus desejos, dos meus sonhos e aqueles que eu vejo no corpo das outras pessoas, perdidos na multidão.
Você me perguntou o que vem primeiro; palavras ou imagens. Isso depende. Quando estou ilustrando a arte de outros artistas: escritos, músicas, a inspiração irá fluir daquela expressão. Quando estou criando meu universo pessoal, tudo está junto como uma totalidade. Normalmente, no La Chambre Noire, é mais a imagem que abre a estrada... É por isso que a fotografia é importante: ela diz sem palavras.
O corpo, o seu corpo principalmente, tem uma grande importância nas suas fotografias. Você tira fotos suas por você mesma ou alguém a auxilia? Qual idioma o seu corpo quer dizer através daquelas cores, vestidos, das texturas. Dos nus. As suas mãos e as cadeiras...
Então.. o corpo, o “país por onde trafego”....O meu, por instância. Por numerosas razões: o simples prazer de “brincar”, aquele “fazer o que quero”, e também por ser mais fácil. Sim, eu quem tiro as fotos de mim mesma. O idioma do corpo? Suavidade, dança, flutuações... Usar o meu corpo é usar uma silhueta “não-comercial”; um corpo feminino vivendo, se movimentando, expressando, brincando... Sendo vivo. Num futuro próximo, pretendo usar outras pessoas. Tomar uma modelo como se tomasse um país. Um outro lado do mundo.
Os trabalhos de Gaëna Des Bois podem ser encontrados em seu blog La chambre noire, com impressões-souvenir na galeria Imagekind. Em algum ponto de Setembro, ela abrirá a sua própria galeria profissional.
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