sexta-feira, 30 de março de 2012

Frida Kahlo

Frida Kahlo: a dor da vida, a dor da arte
publicado em artes e ideias por bianca vale | 1 comentário
Alguns artistas ultrapassam a fama adquirida por seu trabalho e tornam-se sua melhor arte. Esse foi o destino de Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, ou Frida Kahlo, a mexicana que transformou sofrimento em arte.

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© Frida Kahlo, "As Duas Fridas" (1939).

Muitos artistas deixaram sua marca no mundo das artes pelo trabalho que fizeram, pelos quadros que pintaram, pela música que tocaram ou pelo poema que escreveram. Mas alguns poucos foram além e, mais do que a marca deixada por sua obra, confundem-se com ela e ficam eternizados pela sua própria imagem. São esses que se tornam ícones. E foi esse o destino da mexicana Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, ou simplesmente Frida Kahlo.

Simples é obviamente o adjetivo que menos combina com Frida. Sua complexidade tem origem na sua própria história: nascida em 1907, filha de um alemão e de uma mexicana, contraiu poliomielite aos seis anos, o que lhe deixou como sequela uma lesão no pé direito que lhe rendeu o apelido “Frida pata de palo” (Frida perna de pau). A partir daí começou a usar calças e saias longas estampadas, que vieram a se tornar uma de suas referências pessoais. Esse foi só o primeiro marco de como a construção do ícone Frida Kahlo partiu de sua própria dor. E era também só o primeiro de uma série de acontecimentos dolorosos de sua vida.

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© Frida Kahlo, "Auto-retrato" (1926).

Aos 18 anos, Frida sofre um grave acidente: o bonde em que seguia colide com um trem, deixando-a meses entre a vida e a morte devido ao pára-choque que atravessou seu pélvis. Foi durante a recuperação que começou a pintar, usando o material de seu pai, que tinha a pintura como passatempo. O acidente deixou severas marcas a Frida, que teve que viver a partir de então com fortes dores no corpo e coletes ortopédicos.

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© Frida Kahlo, "Coluna Rota" (1944).

Porém, talvez nenhum destes dois acontecimentos tenham sido tão intensos na vida da artista como seu relacionamento com o pintor mexicano Diego Rivera. A própria Frida resume bem a relação em seu diário, "Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles."

A vida do casal foi marcada pela intensidade, tanto na paixão como nas calorosas brigas. Rivera e Kahlo dividiam a militância no partido comunista, o amor pelas artes e uma tendência a relacionamentos extraconjugais. Frida era bissexual, mas Rivera dizia não se importar com seus casos com outras mulheres; apenas os casos com outros homens o incomodavam... Um dos mais famosos, mas já depois da separação, foi com o revolucionário russo Leon Trótski.

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© Frida Kahlo e Diego Rivera (Wikicommons, Carl Van Vechten).

Mas talvez nenhum dos relacionamentos extraconjugais de Frida a marcou tanto quanto a descoberta de que Diego tinha um caso com sua irmã Cristina há anos. Rivera teve 6 filhos com Cristina, e Kahlo nunca perdoou a irmã. Após saber desta traição, Frida separa-se de Diego, mas voltam a ficar juntos novamente em 1940, e assim permanecem até 1954, quando Frida é encontrada morta em sua casa devido a uma forte pneumonia. "Espero que minha partida seja feliz, e espero nunca mais regressar - Frida" foi a última frase escrita pela artista em seu diário.

Um ano antes de sua morte, Frida precisou amputar uns dos pés devido à gangrena, “Pés para que os quero, se tenho asas para voar?” escreveu Kahlo em seu diário, em mais uma demonstração de como era capaz de alterar sua própria percepção do sofrimento.

Em seus quadros, essa capacidade de transformar dor em belas imagens fica clara. É o caso de Columna Rota, de 1944, em que Frida se retrata com a coluna mutilada e o corpo coberto de pregos: a sua dor torna-se tão visível que é possível ao admirador senti-la. Em A árvore da esperança, de 1946, Kahlo pinta novamente sua dor, agora acrescida da esperança de um dia ver-se livre do sofrimento que as sequelas causaram, e para isso pinta duas Fridas: a que convalesce no leito e a que segura um colete agora já inútil. Frida pintou-se como duas em outro quadro, As duas Fridas, de 1939. Mostra-se aqui como uma mulher dividida pela dor lacerante do corpo e da instabilidade de seus relacionamentos, e que ao mesmo tempo é intensa, apaixonada e repleta de esperança. Em seu diário ela ainda acrescenta ''Pinto a mim mesmo porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.''

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© Frida Kahlo, "Árvore da Esperança" (1946).

Mais de 50 anos após sua morte, Frida Kahlo ainda continua sendo influência para muitos artistas. A personalidade forte que é possível ser notada no modo como se vestia, nas telas que pintava, na intensidade com que vivia e na forma como se comprometia com a cultura de seu país tornaram-na modelo de originalidade.

A casa em que viveu tornou-se um museu em sua homenagem, a Casa Azul. Sua vida foi retratada em dois filmes: em 1983, em Frida, natureza viva de Paul Leduc, e em 2002 em Frida, de Julie Taymor, onde foi interpretada por Salma Hayek.

Frida Kahlo teve na dor sua matéria; sua vida foi um turbilhão de sentimentos que a artista conseguiu canalizar em um só: paixão. Suas obras irradiam calor e vivacidade, mas não é só pelo seu trabalho que ela ainda encanta. Frida teve uma vida que faria muitas mulheres se vestirem de luto, mas ela preferiu vestir-se de flores.

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segunda-feira, 12 de março de 2012

Florbela Espanca

Florbela Espanca. Poesia viva e sexualidade à flor da pele

Por Vanda Marques, publicado em 12 Mar 2012 - 17:31 | Actualizado há 9 horas 32 minutos

O realizador Vicente do Ó apresentou esta semana o filme “Florbela”, sobre a vida da poeta de Vila Viçosa. Vanda Marques falou com vários investigadores e professores de literatura para perceber o que tem de especial a poesia de Florbela. A viagem chegou ao Brasil

 

  • Florbela Espanca

     

Divorciada, poeta, mulher capaz de usar calças num tempo em que isso era impensável, filha de uma mãe de aluguer e de um pai que a acarinha, a educa, mas não a assume no papel. Uma das sete alunas de Direito na Universidade de Lisboa, sem nunca conseguir ser respeitada pelos círculos literários e entrar pela ilustre porta dos iluminados da literatura. Maltratada pelo salazarismo, que a vê como uma mulher fácil. “O jornal católico ‘A Época’ considerava o ‘Livro de Sóror Saudade’, típico de uma “escrava de harém”, desmoralizador, escrito por uma Vénus impudica; ele incitava Florbela a purificar os lábios com ‘carvão ardente’”, explica Maria Dal Farra, uma das maiores especialistas na obra de Florbela Espanca.

Mesmo assim, Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, nascida em 1894, nunca foi esquecida, como provam as várias edições dos seus sonetos e contos. “Na literatura portuguesa, Florbela é até certo ponto uma voz isolada. No entanto, aquela energia passional, um bocadinho vulcânica, às vezes escancarada, elementar – parece continuar a comunicar directamente com os leitores, passando por cima dos críticos, da Academia... Toda a gente entende Florbela, toda a gente tem o seu lado Florbela”, diz Ana Luísa Vilela, professora de Literatura na Universidade de Évora.

A investigadora define o que a torna única: “O ADN da poesia de Florbela é o mal-estar dos 15 anos, quando a vida é demasiada e a gente não se entende. A energia terrível da adolescência está lá toda, nos versos dela, e nós amamo-la por isso. Nunca nos ‘curamos’ de Florbela: ela é, exactamente, incurável. Como nós.”

Maria Dal Farra, professora brasileira da Universidade do Sergipe, conhecida como a maior florbeliana, tem mais uma explicação. “A Florbela é uma grande comunicadora. Ela dizia que suas cartas de amor não eram mais que a sua necessidade de fazer frases! Há nos seus versos a passada de um laço de intimidade com o seu interlocutor que o torna preso dos seus encantos femininos e poéticos. Ela entorta o estereótipo, ela inverte a vassalagem amorosa, ela faz declaração de cio com uma espontaneidade que desarma, e tudo dentro de uma delicadeza e elegância primorosas. Ela tem um poder de sedução danado!” A sexualidade feminina até então no armário é transformada em poesia, é reclamada como direito e louvada como tal.

Claudia Pazos-Alonso, professora na Universidade de Oxford, que escolheu Florbela como objecto da sua tese de doutoramento, quando percebeu que a autora ainda era pouco estudada, sublinha que essa é uma das suas singularidades. “A forma como encara e verbaliza a sexualidade feminina é excepcional”, explica ao i, por telefone. Basta recordar uma parte do soneto “Tarde no Mar”, publicado em “Charneca em Flor”, em 1930: “E, sobre mim, em gestos palpitantes/As tuas mãos morenas, milagrosas/São as asas do Sol, agonizantes...”. “Sua poesia mostra-nos a perfeita combinação entre o interdito (legado imposto historicamente às mulheres) e a satisfação por expressar seus desejos mais recônditos”, explica Fabio Mario Silva, doutorando em Literatura, na Universidade de Évora, que destaca ainda a relação da angústia com a saudade, sempre presente.

Trabalhar a palavra José Régio foi dos primeiros a falar do trabalho de Florbela de forma séria. Chamava-lhe poesia viva, e não “um simples bordado, ou devaneio sentimental”, como os seus contemporâneos faziam, aponta Nuno Júdice, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.

Florbela trabalhava o soneto e apostava na sofisticação da língua. “A forma como ela usa o soneto vai extravasar o seu uso normal ”, defende Claudia Pazos-Alonso. “Há na sua poesia muitas leituras, de Paul Verlaine a Ruben Darío. Além disso, a questão da saudade nasce do seu conhecimento profundo da poesia portuguesa, e temos ecos de poetas, de Camões e António Nobre a Teixeira de Pascoaes, além dos contemporâneos com quem se correspondia (Raul Proença, Américo Durão, etc.). Não era portanto, em termos literários, nem uma ingénua nem uma autodidacta”, conclui Nuno Júdice. O professor de Literatura conta ainda que a descoberta mais interessante da obra de Florbela foi a de um heterónimo. “Um dos aspectos mais interessantes foi ver como existe a criação de um quase heterónimo: Soror Saudade – de quem ela fala como se fosse outra. Essa Soror Saudade é a forma de ela se distanciar do que nela é a pulsão amorosa, física, que a empurra para um amor que nada tem de ideal. Soror Saudade, pelo contrário, é a monja que dá corpo a um outro tipo de amor, mais espiritual e simbólico.”

Um dos aspectos que assombram sempre a sua poesia é a hipótese de Florbela Espanca ser bipolar. Conclusões para psicólogos, mas Claudia Pazos-Alonso aponta: “Não posso dizer com certeza, mas ela oscila entre os extremos: a exaltação e a depressão. Até dentro dos próprios livros, como Livro de Soror Saudade.”

Infância “Aos oito anos já fazia versos, já tinha insónias e já as coisas da vida me davam vontade de chorar.” Florbela Espanca começou a escrever cedo, como a própria contou em cartas, e a sua primeira obra sai em 1919 – “Livro de Mágoas”, que se esgotou rapidamente. Tragicamente, o livro que os especialistas apontam como obra-prima é “Charneca em Flor”, publicado depois da sua morte, em 1930. É o provável suicídio que tragicamente a torna ainda mais conhecida. Maria Dal Farra defende que a polémica surge quando o seu editor faz crer que o suicídio, dois abortos, dois divórcios, o suicídio do irmão, a perda da mãe, estão nos poemas. Em parte é verdade, mas ela não deixa de ser uma poeta que trabalha a palavra. “Os seus admiradores queriam fazer crer ao leitor de então que sua obra era uma espécie de comentário à sua vida, e que, lendo-a, você estaria apto a compreender as razões da sua morte. O responsável por essa disseminação de marketing foi o Guido Battelli, que queria vender os exemplares do ‘Charneca’”, diz Dal Farra.

Lá fora José Carlos Fernández, autor de uma biografia de Florbela Espanca, editada pela Edições Nova Acrópole, descobriu a escritora quando chegou a Portugal, em 2004, e ficou apaixonado pela sua poesia, que diz semelhante à música de Chopin. “Não há nada de cacofónico, vulgar; as palavras fluem como a água pura de um regato de montanha; outro rasgo da sua poesia é a pureza das suas imagens, em que não há tramas intelectuais, senão uma leitura da sua própria alma, sem artifícios”, explica por email.

É fácil perceber que a dimensão de Florbela não é apenas nacional quando Maria Dal Farra nos conta como foi orientadora de diversas teses sobre ela. “Hoje em dia o meu Grupo do Diretório de Pesquisas conta com nove pesquisadores de diferentes universidades no Brasil, em Portugal e na Alemanha, reunidos em torno dela.” Fabio Mario Silva, brasileiro que estuda a obra da autora, conta por experiência própria que Florbela é mais estudada lá do que cá. “Os autores portugueses muitas vezes são mais reconhecidos fora de Portugal. A obra de Florbela Espanca foi mais bem tratada no Brasil. Há imensas dissertações de mestrado e teses de doutoramento feitas e em curso no Brasil. A maior especialista florbeliana é a professora brasileira Maria Lúcia Dal Farra, que há anos vem apresentando trabalhos na academia, lutando contra essa invisibilidade académica portuguesa. No entanto, o leitor português, esse sim, lê muito Florbela.”