Por vezes é bom regressar ao passado para recordar/ conhecer algo extraordinário, algo que nos marcou ou que nos escapou. Há uma dimensão não imediata em todas as coisas, e é possível encontrá-la até nos maiores desastres naturais, como é o caso. O britânico Russel Watkins relata e ilustra a tragédia e a maravilha encerradas pelas cheias de 2010 no Paquistão.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
Da mesma forma que não só os desastres que afectam os grandes devem ser tomados como relevantes, não só os milagres humanos (religiões desde já à parte!) são dignos de nota, muito pelo contrário. A dualidade natural não é novidade. Beleza e destruição convivem verdadeiramente em porções iguais, pelo que nada há de mais subjectivo que a sua percepção. Para muitos, o que se segue passou ao lado; para outros, é assunto tão pesado que não permite ver mais. Para tantos outros, tudo isto fará sentido.
2010 revelou-se um ano negro na história do Paquistão. A inundação provocada pela maior monção desde 1994, e a segunda maior nos 50 anos que a precederam, fez submergir uma área de quase 800 mil quilómetros quadrados, cerca de um quinto da área total do país. Segundo o governo paquistanês, 20 milhões de pessoas - um décimo da população - distribuídas pela bacia do rio Indo, pelas províncias de Khyber Pakhtunkhwa, Sind, Punjab e Baluchistão, foram directamente afectadas.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
Com as cheias, que reclamaram quase duas mil vidas, veio a destruição das infraestruturas, das colheitas, e também doenças como a cólera ou a malária, resultado das más condições sanitárias e da falta de água potável. Muitos viriam ainda a perecer, indirectamente, naquele que foi considerado um dos maiores desastres naturais do século XXI, quer pelo seu alcance geográfico - do Planalto Tibetano ao Mar Arábico - quer pela percentagem de população afectada ou pelo impacto económico causado. Combinando o tsunami do Oceano Índico em 2004, o sismo de 2005 que também assolou o Paquistão e o sismo de 2010 no Haiti, não foram atingidas tantas pessoas ou uma área maior, ainda que muitos mais tenham morrido.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
A ajuda internacional foi prestada a uma escala correspondente à da calamidade; no entanto, o sofrimento das populações de algumas regiões continua até hoje, e a já grande divisão entre classes aumentou muito.
O tema integrou os jornais de todo o mundo, é certo, mas esta informação não causou o impacto de eventos como o 11 de Setembro, e talvez por isso não se imprimiu na memória dos espectadores. A selecção da informação é isso mesmo: uma selecção, tão subjectiva, humana e possível como a escolha das imagens que ilustram estas palavras, imagens estas que pela sua singularidade isolaram do caos da destruição a beleza digna de registo mental, pois a destruição, essa, é banal.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
Muitos meses passados sobre a cheia inicial de Julho de 2010, e já no período de calmaria depois da tempestade no qual tudo parece parar, reunindo forças para começar a recompor-se, o fotógrafo Russel Watkins, ao serviço do Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional, encontrou na ainda bastante alagada província de Sind algo surpreendente, um modelo de esperança, à escala. Num fenómeno sem precedentes para os próprios habitantes locais, lentamente regressando ao pouco que a água deixou, surgiu no seio da destruição, em cada árvore, um microescossistema.
Para fugir à rápida subida das águas, que nalgumas zonas ultrapassou os seis metros, milhões de aranhas encontraram nas poucas árvores disponíveis o único porto seguro. A sobrepopulação fez com que, em pouco tempo, estas se assemelhassem a grandes casulos de seda, destacando-se no horizonte da agora inóspita região agrícola. Muito mais do que um quadro de rara beleza, uma estranha beleza nascida do alto contraste com o cenário circundante, as fotografias de Watkins revelam a força com que aqueles pequenos animais se agarraram à vida, e às árvores, ao mesmo tempo que escondem uma ajuda não premeditada às populações da província do sul.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
A massiva quantidade de água estagnada, que tanto tempo levou a recuar, tornou-se um paraíso para uma outra espécie animal, o mosquito, criando as condições ideais à reprodução deste portador do parasita da malária. Os mosquitos rapidamente se tornaram um dos maiores problemas nas áreas afectadas pelas cheias mas, na província de Sind, as árvores cobertas de teias de aranhas predadoras desempenharam um papel inesperado e fundamental, reduzindo exponencialmente o número de mosquitos e tornando, consequentemente, pontuais os casos de malária.
A beleza destas imagens fê-las correr o mundo numa altura em que da tragédia que silenciosamente contam nem um eco, talvez, se encontrava. No cenário da destruição experienciada pelo Paquistão, um pequeno milagre destacou-se, relembrando a capacidade de adaptação e de regeneração da natureza, sem par, nem entre a raça humana. Mas Russel Watkins frisa que ainda que a natureza tenha inadvertidamente favorecido o Homem, uma outra realidade se lhe seguiria: muitas das já poucas árvores morreriam cobertas de teias, perdendo as populações o abrigo natural das altíssimas temperaturas de Verão... Sempre a dimensão mutável, circular e dual do Universo.
© UK Department for International Development/Russell Watkins.
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