Carta
Toranja
Não falei contigo     
Com medo que os montes e vales que me achas      
Caíssem a teus pés...      
Acredito e entendo      
Que a estabilidade lógica      
De quem não quer explodir      
Faça bem ao escudo que és...
Saudade é o ar     
Que vou sugando e aceitando      
Como fruto de Verão      
Nos jardins do teu beijo...      
Mas sinto que sabes que sentes também      
Que num dia maior serás trapézio sem rede      
A pairar sobre o mundo      
Em tudo o que vejo...
É que hoje acordei e lembrei-me     
Que sou mago feiticeiro      
Que a minha bola de cristal é folha de papel      
Nela te pinto nua, nua      
Numa chama minha e tua.
Desconfio que ainda não reparaste     
Que o teu destino foi inventado      
Por gira-discos estragados      
Aos quais te vais moldando...      
E todo o teu planeamento estratégico      
De sincronização do coração      
São leis como paredes e tectos      
Cujos vidros vais pisando...
Anseio o dia em que acordares     
Por cima de todos os teus números      
Raízes quadradas de somas subtraídas      
Sempre com a mesma solução...      
Podias deixar de fazer da vida      
Um ciclo vicioso      
Harmonioso ao teu gesto mimado      
E à palma da tua mão...
É que hoje acordei e lembrei-me     
Que sou mago feiticeiro      
Que a minha bola de cristal é folha de papel      
Nela te pinto nua, nua      
Numa chama minha e tua.      
Numa chama minha e tua.
Desculpa se te fiz fogo e noite     
Sem pedir autorização por escrito      
Ao sindicato dos deuses...      
Mas não fui eu que te escolhi.      
Desculpa se te usei      
Como refúgio dos meus sentidos      
Pedaço de silêncios perdidos      
Que voltei a encontrar em ti...
Hoje acordei e lembrei-me     
Que sou mago feiticeiro...
...nela te pinto nua, nua     
Numa chama minha e tua.      
Numa chama minha e tua.
Ainda magoas alguém     
O tiro passou-me ao lado      
Ainda magoas alguém...      
Se não te deste a ninguém      
Magoaste alguém      
A mim... passou-me ao lado.      
A mim... passou-me ao lado.      

As Pessoas Sensíveis (Sophia de Mello Breyner Andresen)
     
As pessoas sensíveis não são capazes      
De matar galinhas      
Porém são capazes      
De comer galinhas      
O dinheiro cheira a pobre e cheira      
À roupa do seu corpo      
Aquela roupa      
Que depois da chuva secou sobre o corpo      
Porque não tinham outra      
O dinheiro cheira a pobre e cheira      
A roupa      
Que depois do suor não foi lavada      
Porque não tinham outra      
"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"      
Assim nos foi imposto      
E não:      
"Com o suor dos outros ganharás o pão".      
Ó vendilhões do templo      
Ó construtores      
Das grandes estátuas balofas e pesadas      
Ó cheios de devoção e de proveito      
Perdoai-lhes Senhor      
Porque eles sabem o que fazem.
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