segunda-feira, 14 de maio de 2012

Blow-up

Blow-up é um longa-metragem recheado de metáforas que incita a uma discussão sobre a representação da realidade pela fotografia. Uma análise dos créditos iniciais mostra o vanguardismo de Antonioni, ao fazer deste mero artifício técnico uma metáfora. Pode parecer entediante, mas não é.

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Alguns filmes das décadas de 1960 e 70 trouxeram à grande tela questões que marcaram a história desde os anos seguintes até à atualidade. Diretores como Miloš Forman (Hair) e Stanley Kubrick (Laranja Mecânica) são hoje referência da crítica por tratarem, anos atrás, de assuntos “nunca tão atuais”, como os próprios críticos contemporâneos dizem. Obras como estas estão imortalizadas e são hoje acessíveis em DVD e outras mídias, caso o espectador não se preocupe com os aspectos legais.

Um destes “diretores visionários” (mais uma vez utilizando os clichês da crítica) é Michelangelo Antonioni, não tão conhecido do grande público e por isso motivo principal deste artigo.

Em 1966, o cineasta italiano estreou (em inglês) sua magnum opus: Blow-up, traduzida no Brasil como Blow-up – Depois Daquele Beijo e em Portugal como Blow-up – A História de Um Fotógrafo. O longa é recheado de metáforas e incita a uma discussão sobre a representação da realidade pela fotografia. Pondera questões como “até onde o que é captado pelo equipamento pode ser realidade?”, “a imagem representada pela fotografia depende inteiramente da interpretação humana?” e muitas outras, que surgem de acordo com a interpretação do espectador (!). Pode parecer entediante, mas não é.

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Blow-up (vou economizar caracteres e utilizar seu título original) não é um documentário. Não contém “especialistas” que nunca se encontraram discutindo um assunto específico. Pelo contrário: é uma narração ficcional baseada num conto de Julio Cortázar, que prende o espectador com personagens cativantes muito bem construídos.

“Filme obrigatório” (mais uma vez o linguajar dos críticos!) para os amantes de artes plásticas, fotografia, cinema, moda, estudantes de semiótica e filósofos de botequim. Confira abaixo o teaser do mesmo:

“Algumas vezes a realidade é mais estranha do que todas as fantasias”, é a primeira frase dita pelo narrador no teaser. É em meio a um paralelo real-fantástico passado na Swinging London dos anos 1960 que o ator David Hemmings vive Thomas (cujo nome não aparece no filme sequer uma vez): um arrogante fotógrafo de moda que, apesar de ser um renomado profissional, tem uma vida conturbada, caótica e aparentemente infeliz. Certo dia, num parque, o personagem fotografa, sem permissão, uma jovem em companhia de um homem mais velho. Esta jovem, incomodada com as atitudes invasivas de Thomas, o segue até sua casa e exige o filme que utilizou (lembrem-se: não havia fotografia digital nesta época!), porém ele lhe entrega um rolo virgem.

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Intrigado com a preocupação da mulher, Thomas revela e amplia as imagens para analisar a sequência, voltando sua atenção para um detalhe de uma delas, que mostrou um indivíduo (seria mesmo um indivíduo?), inicialmente oculto, com uma arma na mão (seria mesmo uma arma?). Tentando obter mais detalhes, Thomas utiliza a técnica do close-up e amplia a fotografia sucessivas vezes até a sua deformação (ato expresso em inglês como blow-up, eis a origem do nome do filme). Por conta deste zoom, a imagem do, digamos, “personagem-surpresa” se distorce em inúmeros pontos granulados (nada de pixels!), o que impede qualquer afirmação.

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Havia realmente alguém ali? Esse alguém apontava uma arma? Isso explica o incômodo da mulher? Ela estava sob ameaça? Ou era o homem mais velho que estava sob ameaça? Seria tudo uma emboscada planejada por ela para assassinar o homem mais velho? Paro por aqui com a sinopse (e as indagações) para evitar reclamações. Antonioni, segundo alguns críticos, é um cineasta “além-Hollywood” – expressão utilizada (pelos críticos!) para classificar filmes que vão além da superfície das telas, aproximando-se mais do conceito de arte do que de entretenimento. Uma das características deste gênero é o uso de metáforas para abordar indiretamente temas mais profundos ou até mesmo considerados tabus para a época de seu lançamento.

Vamos a uma pequena análise dos créditos iniciais de Blow-up, que destacou Antonioni como vanguardista ao fazer deste mero artifício técnico um canal estritamente metafórico para introduzir um conceito-chave ao espectador – ainda que isso passe despercebido pela maioria do público.

A abertura em questão traz informações técnicas do filme ao som do jazz de Herbie Hancock, porém suas letras são vazadas e, através delas, podemos vislumbrar pedaços de uma imagem que ali se esconde, de compreensão muito difícil. Segundos depois, após o título do filme surgir na tela, há uma ampliação do quadro e a imagem subliminar finalmente nos é revelada - porém, por um curtíssimo espaço de tempo: uma linda mulher seminua num telhado que causa alvoroço nos transeuntes (fotógrafos? jornalistas?). Os créditos prosseguem, colocando o espectador outra vez na situação primeira. Todavia, agora que temos conhecimento do todo – ainda que por meio de um flash – conseguimos imaginar o que se passa nos pedaços faltantes.

Essas tentativas de desvendar a cena causam certa sensação de desconforto pelo fato de já sabermos do que trata a imagem, mas não termos certeza alguma, já que nossas suposições se baseiam não na imagem estática de uma fotografia, mas numa imagem em movimento, o vídeo. Afinal, as frações da imagem que estamos a assistir são realmente o que estamos imaginando? Este pequeno detalhe serve como uma perfeita alusão ao que está por vir e, ao ser relacionado com o desfecho do filme, funciona como uma chave para sua compreensão. É a primeira de muitas metáforas sincronizadas e interligadas desta grande obra.

O mundo nunca esteve tão multimídia como hoje. Somos bombardeados diariamente por fotografias, vídeos, cartoons, ilustrações e outras formas de representação imagética da realidade – uma overdose. Antonioni, como todo “gênio do cinema” (outra vez um clichê da crítica) exalta a privilegiação da imagem sobre o mundo real: a metáfora perfeita para a supervalorização dos estímulos sintéticos sobre os naturais.

Antonioni vê o homem do século XX como um prisioneiro das regras sociais que ele mesmo criou, em meio a um novelo de amarras sociais guiado pela inércia ideológica. Estas propriedades, tão comuns nas distopias escritas décadas atrás, relacionam-se de forma explícita com uma das características mais latentes da pós-modernidade: a dominação da comunicação estritamente visual (ou vai dizer que você não viu as imagens e assistiu os vídeos deste artigo?). Blow-up funciona como um registro dos primórdios desta idolatria opticista, seus efeitos colaterais e, quem sabe, uma possível superação. Se não assistiu ainda, faça-o! Qual a sua interpretação?
Fonte: muito do que foi escrito aqui teve como base um capítulo inteiro dedicado ao filme Blow-up no livro À Meia-Luz: cinema e sexualidade nos anos 70, de Paulo Menezes, publicado em 2001 pela Editora USP.

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