sexta-feira, 8 de abril de 2011

A Pan-Amazónia

A Pan-Amazónia é partilhada por vários países da América do Sul, mas mais de metade fica em território brasileiro. À distância, o resto do mundo preocupa-se com o seu progressivo desmatamento, mas, ao mesmo tempo, não resiste ao seu apelo turístico de “mundo do fim do mundo”. Ante a sua desproporção e quase infinidade, fizemos como todos os iniciados e começámos pelo mais simples, mas nem por isso necessariamente óbvio ou para todos. De Manaus a Belém… Um mês ou dois após o meu regresso, corria nas redes sociais um abaixo-assinado para travar o complexo hidroeléctrico de Belo Monte, no rio Xingu, estado do Pará. Em causa, uma área superior ao Canal do Panamá, que, a avançar e a fazer fé em quem se opõe ao projecto, será responsável pela inundação de, no mínimo, 400 mil hectares de floresta, provocando o êxodo de 40 mil indígenas e de várias comunidades locais, por um lado, e a destruição do habitat de inúmeras espécies protegidas, por outro.
Sempre que se fala da Amazónia, ou da Pan-Amazónia – como se entendeu designar toda a área de 5,5 milhões de km2 partilhada por nove países sul-americanos na bacia do maior rio do mundo, o Amazonas –, ficamos num dilema: até que ponto as notícias mais alarmistas espelham com exactidão a realidade ou são antes, com mais ou menos distorção, tentativas de levar a opinião pública mundial (porque estamos a falar de um património comum à Humanidade, reconhecido pela UNESCO) a tomar partido?
Diz-se que a floresta tropical, no quinhão gigantesco de 60% que coube ao Brasil, nunca esteve tão protegida – uma das grandes bandeiras do governo de Lula da Silva, e agora também da presidente eleita Dilma Rousseff, foi precisamente a redução em 75% do desmatamento e o ter colocado o Brasil na dianteira da defesa ambiental. Mas há quem, mesmo assim, não se canse de alertar para a morte anunciada da maior reserva natural do planeta, ao mesmo tempo que aponta o dedo às obras de grande envergadura, como Belo Monte, que prosseguem à revelia da conservação ambiental e do interesse local.
E qual é o papel do turismo num desenvolvimento que se quer sustentável? Não sendo, pelas suas características específicas, um destino para todos, o apelo da Amazónia brasileira é grande e crescente. Há uma aura de encantamento, até mesmo de mistério, que atrai um tipo de turista disposto a pagar pelo privilégio – porque é longe (para se ter noção, só no Brasil, a Amazónia distribui-se por nada menos do que nove estados), porque as distâncias são enormes, porque a infra-estrutura turística é menor e porque não se pode falar (ainda) de um produto massificado.

A redução drástica do desmatamento legal na Amazónia foi uma das grandes bandeiras do Governo de Lula da Silva, e agora também de Dilma Rousseff, e permitiu ao Brasil tomar a dianteira da consciência ambiental. Será suficiente?



Arquipélago das Anavilhanas, a três/quatro horas de carro de Manaus; menina cabocla, nome dado aos mestiços que resultam da união de brancos e índios; varanda do Palácio Rio Negro, o mais imponente de Manaus; bungalows do Anavilhanas Jungle Lodge. Nas páginas anteriores: floresta de igapó e embarcação no rio Negro


Convém, por isso, saber ao que se vai. Primeiro, o clima, bastante quente e húmido. Depois, as cidades, porque temos de começar por algum lugar; e são cidades a valer, com tudo o que isso implica de bom e de menos bom. Manaus, capital do estado do Amazonas, e Belém, capital do estado do Pará, são as duas portas principais de entrada para quem visita a Amazónia brasileira, mas ficam a mais de cinco mil quilómetros uma da outra e, por si sós, não saciam a sede de quem veio de longe para ver “selva” e “bichos” (e “índios”, segundo o imaginário de quem vê muitos documentários da National Geographic).
E aqui chegamos a um ponto fundamental de ser esclarecido para evitar mal-entendidos a priori e desilusões a posteriori: os ditos “hotéis de selva”, em diferentes níveis de conforto e luxo, mais ou menos isolados, mas quase sempre caros, proporcionam diversos graus de imersão na floresta amazónica, mas, até por questões de ordem prática – e porque a maioria dos visitantes está menos disposta do que imagina, à partida, a renunciar à “civilização” –, não vão além de um primeiro contacto com a “selva” (imagine a floresta amazónica em camadas, como uma cebola, e ficar-se-á apenas pelas mais superficiais, por regra as áreas próximas aos rios, conhecidas por floresta de igapó).
O mesmo vale para os passeios e excursões. Não são expedições, nem acampamentos de sobrevivência. São visitas guiadas, umas mais imperdíveis do que outras, que nos permitem navegar nos rios, caminhar na mata, tirar fotografias às enormes seringueiras e aos nenúfares gigantes, aprender um ou outro truque, admirar os ninhos das térmitas, mas que só muito raramente, e com sorte, lhe vão dar a oportunidade de avistar animais selvagens. Eles estão lá, podemos ouvi-los e até imaginá-los, mas não se deixam ver. Há excepções, claro, mas nada que se possa comparar, por exemplo, à fartura do Pantanal, no Mato Grosso do Sul.
Por sua vez, entre Manaus e Belém, existem inúmeros povoados, ilhas e praias fluviais, como Parintins (famosa pelo seu festival folclórico) ou Santarém (uma das muitas que ostentam nomes de cidades ou vilas portuguesas), que valem a viagem, mas para lá chegar precisa de tempo extra, o que nem sempre é possível. A travessia de barco, a mais comum e viável à falta de estradas, implica vários dias e paragens, não sendo uma experiência que agrade a todos – não confundir com os navios de cruzeiro, mais luxuosos, que navegam nos rios Negro e Solimões, que podem levar até cinco dias, mas nunca vão muito longe –, e de avião, quando há, não é barato.
Avisado sobre tudo aquilo que, por regra, não lhe contam, chegamos à melhor parte: está pronto para embarcar numa viagem que, mesmo limitada no tempo e no espaço, tem tudo para ser uma experiência inesquecível (e para repetir, quase aposto).


O Teatro Amazonas, construído à escala europeia nos finais do século XIX graças ao dinheiro dos barões da borracha, recorda a Manaus um tempo que já não volta mais. Bairro anfíbio manaura; vendedora do Mercado Ver-o-Peso, em Belém; e catedral, na Praça da Matriz, em Manaus


Manaus será uma das anfitriãs brasileiras da Copa 2014 e quer agarrar esta oportunidade para recuperar o viço

Manaus, a indomada
“Manaus cresceu assim: no tumulto de quem chega primeiro” (Dois Irmãos, Milton Hatoum). Foi a prosa de Hatoum, nascido em Manaus na década de 1950 e com romances publicados em Portugal, quem me ajudou a olhar a capital amazonense com outra benevolência. As suas memórias, e as das suas personagens, passaram a ser um pouco minhas, como se, de alguma forma, também eu já tivesse tido uma outra vida aqui.
Cheguei nas comemorações do 341.º aniversário da cidade. Depois da indústria pesada – que retirou Manaus da ruína em que havia mergulhado desde que os ingleses levaram mudas das seringueiras, de onde se extrai o látex, para a Malásia e iniciaram ali, com condições mais propícias, um novo ciclo da produção de borracha natural –, é agora o Campeonato Mundial de Futebol de 2014 a grande força mobilizadora, levando-a a acelerar a recuperação do centro histórico, a investir em novas unidades hoteleiras e na criação de melhores infra-estruturas, ao mesmo tempo que tenta arrumar a casa e domar o caos que tomou conta de muitos sectores.
Com quase dois milhões de habitantes, de origens dispersas, Manaus levou a melhor à sua rival Belém, conseguindo os favores da FIFA para ser uma das sedes brasileiras da Copa, mas tem ainda um árduo trabalho pela frente se quer fazer boa figura. Os 18 quilómetros da praia da Ponta Negra, afastada do centro, são disso um bom exemplo. Ancorada às margens do rio Negro, o maior afluente do gigante Amazonas (que no Brasil é chamado de Solimões), é nesta zona de lazer que continua a grande dama da hotelaria local, o incontornável Tropical (ver guia); mas, mesmo com condomínios de luxo a enfeitar a orla, a avenida marginal envelheceu mal, sendo necessária uma intervenção de grande fôlego. Quem dera que, concluído o facelift, este trecho de Hatoum volte a soar familiar: “aos domingos quando os manauaras saem ao sol e a cidade se concilia com o rio Negro”.
Fora do centro, na periferia, mas também nas zonas ribeirinhas, é possível compreender a génese de Manaus, uma capital erguida, quase como um capricho, no meio da selva em tempo de bonança, mas que cresceu, sem rei nem roque, já numa fase de declínio. Quando o ciclo da borracha brasileira entrou em colapso, muitos dos que vieram em busca de trabalho nessa indústria perderam o seu sustento e, com uma mão à frente e uma família atrás para sustentar, foram trocando os seringais pela cidade. E instalaram-se como puderam, “no tumulto de quem chega primeiro” e toma a sua vez.
O centro histórico, ainda que não escape ileso à desordem, guarda resquícios da era de ouro, em que os barões da borracha se davam ao luxo de encomendar palacetes ou até mesmo uma ópera à escala europeia. As torres despropositadas que cercam a praça de São Sebastião são empecilhos à circulação da brisa vinda do rio, mas, por comparação, aumentam o viço dos sobrados antigos que sobejaram e fazem com que só tenhamos olhos para o Teatro Amazonas. Entre mangueiras e ficus aparados (os benjaminzeiros), rodeada de calçada portuguesa que um dia se viu atapetada de látex para que o barulho das carruagens fosse amortecido, o teatro de finais do século XIX mantém-se em actividade e ainda é possível sentir entranhado, no meio de tanto esplendor, o frenesi e as conversas de salão que entretinham a fina flor da sociedade sempre que havia espectáculo. O El Dorado era então aqui e tudo parecia possível.

A Amazónia para iniciados não vai além das florestas de igapó, mas, ainda assim, é uma experiência e tanto



O anoitecer num ancoradouro em Anavilhanas. Na página ao lado: árvores de grande porte, como as seringueiras, fazem as delícias dos visitantes; os botos são golfinhos amazónicos que ostentam um tom rosado na idade adulta; encontro dos rios Negro (mais escuro) e Solimões (Amazonas); e piscina do Anavilhanas Lodge


Quase colado, o Palácio da Justiça, de estilo renascentista, alberga desde 2006 um cinema e exposições temporárias, mas são o Palacete Provincial, na bonita praça ajardinada de Heliodoro Balbi (a Praça da Polícia), e o Palácio Rio Negro, antiga casa baronesa e sede do governo estadual, que mais merecem uma visita.
A 7 de Setembro, que liga o centro ao sul, é um dos principais eixos de Manaus e mergulha-nos de novo na confusão: cachos de fios eléctricos, trânsito nervoso, música alta… A Praça da Matriz, onde está a catedral, não é muito diferente, mas, a par da redução da criminalidade e da prostituição, tenta-se agora que os vendedores ambulantes sejam transferidos para junto da antiga Alfândega, já no porto. A olho nu, vê-se que muito do património está em estado periclitante. Consigo encontrar-lhe uma certa melancolia decandente, mas nem todos são tão generosos na sua avaliação. Até porque o calor excessivo, potenciado por uma humidade de quase 100%, não é para todos. “Estava ensopado de suor, irritado com a sujeira acumulada nas ruas. Aos poucos, tudo isso foi perdendo importância”, escreve Hatoum.
O porto flutuante possui uma área comercial, com vários passadiços, mas o mais interessante é ficar a ver quem chega e parte, não só a bordo dos navios de cruzeiro, mas também das carreiras regulares que asseguram a ligação, por rio, com outras localidades mais remotas.
A proximidade ao rio traz-me à lembrança que muito do mérito da cozin(y)ha manauara, assumidamente mestiça, assenta na riqueza dos peixes amazónicos. Quem está habituado à textura e sabor dos peixes de mar estranha um pouco, mas vale a pena dar um voto de confiança ao tambaqui, ao pirarucu e ao tucunaré (para citar os mais apreciados). Existem várias casas recomendadas para os degustar – em caldeirada, assados e até em versão fumada –, mas foi no Banzeiro, bairro de Adrianópolis, que provei uma excelente moqueca de pirarucu e um sorvete de tucumã, fruto de uma palmeira amazónica, que os manauaras têm por hábito comer às lascas, dentro de um pão, e que qualquer lanchonete da cidade serve com o nome sugestivo de x-caboclinho.
Anavilhanas, o baptismo amazónico
Do porto flutuante de Manaus sai um passeio de barco, com a duração de meio dia, para ir ao encontro dos rios Negro e Solimões. Estamos a cerca de 1650 quilómetros do Atlântico e, até se fundirem num só, os dois rios correm, lado a lado, por seis quilómetros.
Na frente ribeirinha de Manaus, o mercado e os bairros anfíbios de São Raimundo ou de Educandos, com as casas toscas, mas coloridas, empoleiradas em andas que as colocam a salvo da subida das águas, confirmam tudo aquilo que intuíra sobre ela. Duas horas depois, dá-se a mestiçagem entre as águas escuras e mornas do rio Negro (que já foi mais escuro) e as águas leitosas e mais frias do Solimões. E a sensação de estarmos a boiar num bolo mármore mantém-se até que o Solimões, ou Amazonas, leva a melhor.
Cada vez mais arredios, os botos – golfinhos da região amazónica, que ganham um tom rosado à medida que se tornam adultos – não deixam a organização ficar mal e, por momentos, acompanham, a uma distância segura e longe das miras fotográficas, a embarcação. Não é o que muitos sonharam ver, é o que se pode arranjar.
Os bairros flutuantes já rareiam, mas ainda se vêm, aqui e acolá, casas construídas em madeira de açacu – muito resistente e que se mantém à tona –, presas às margens por cabos de aço. Nalguns casos, estas comunidades caboclas ribeirinhas tentam tirar dividendos do turismo. Vêm até ao barco em canoas, para vender o seu artesanato, ou, mais improvável, montam um negócio como o restaurante onde paramos para almoçar.
Antes da refeição, a excursão prevê uma caminhada em terra firme, pois a seca assim o permite, para sentir a “selva” e avistar as extraordinárias Vitórias- Régias, nenúfares gigantes. Para muitos é uma iniciação e o mais perto que chegarão de poder dizer que estiveram na “Amazónia”. Trata-se, com efeito, da fase 1, a chamada floresta de igapós, perto do rio e com trilhos abertos na mata. Na época das cheias, o nível das águas sobe de tal modo que os igapós ficam totalmente alagados e só as copas das árvores mais altas permanecem de fora. Nessa altura, só mesmo de canoa.

O labiríntico arquipélago das Anavilhanas, formado por mais de 400 ilhas, é um dos maiores da região e permite já, a boa distância de Manaus, uma maior imersão nas maravilhas e nos rituais diários da Amazónia


Na altura das cheias, apenas as copas das árvores mais altas ficam de fora; barqueiro do Anavilhanas Jungle Lodge; varanda de um dos 20 bungalows do Anavilhanas Jungle Lodge (nos quartos superiores, parte das paredes são em vidro); caimão-fêmea na borda do rio Negro, no arquipélago das Anavilhanas


Entre as várias “cidades” no meio da floresta amazónica que começam a desabrochar para o turismo, sem dúvida que Novo Airão, entre o rio Negro e o arquipélago das Anavilhanas (um dos maiores da região, com mais de 400 ilhas), é aquela que, no conjunto, proporciona a melhor experiência. Para isso contribui, e muito, o Anavilhanas Jungle Lodge, com apenas 20 bungalows (quatro dos quais com paredes de vidro, para aumentar a sensação de imersão na mata à volta) e um conceito que o torna luxuoso sem deixar de ser rústico. Para lá chegar são precisas entre três a quatro horas de estrada a partir de Manaus (com a nova ponte de Iranduba, é provável que demore um pouco menos agora), pelo que é prática da casa exigir que se fique três noites e quatro dias em regime de pensão completa.
O conforto dos bungalows, a arquitectura aberta, os banhos de sol no deck de madeira à volta da piscina debruçada sobre o rio (os mais afoitos alternam braçadas numa e noutro), os fartos buffets servidos ao longo do dia na choupana-restaurante, a Internet por satélite, a leitura ou a simples preguiça numa rede, tudo isso são detalhes que fazem a diferença, e merecem ser desfrutados, mas, como num safari, no preço do pacote estão incluídos todos os passeios, de barco ou a pé, mas sempre com vigilância, em diversos pontos das ilhas Anavilhanas. Para manter grupos pequenos, os hóspedes são divididos e alternam as várias actividades durante a sua estada. É uma forma de promover o convívio e de todos partilharem, à hora das refeições, o que viram e fizeram ao longo da jornada. Alguns guias, como Leandro, são indígenas, o que dá outro sabor a pequenos ensinamentos – como usar a mata a nosso favor, servindo- nos de troncos ocos, por exemplo, para emitir sons – e transmite confiança para abraçar árvores colossais, degustar certas larvas, caminhar descalço ou deixar uma enorme e peluda aranha-caranguejeira trepar pelo nosso braço.
Para pena minha, não sobra tempo para ir até ao Parque Nacional do Jaú (só de barco, seriam mais seis horas, implicando acampar ou pernoitar na casa de locais), mas fica-me o consolo de ter visto um dos mais radiosos amanheceres da minha vida às margens do Negro, antes de sair de barco em mais um passeio para a observação de aves madrugadoras (ouvi mais do que vi), e de ter tido o privilégio de, apenas iluminado pelo luar reflectido no rio, sair no encalce de criaturas nocturnas como as corujas, os caimões, os jacarés ou até mesmo as piranhas.
Já a visita guiada por Novo Airão não somou grande coisa à experiência, a não ser pelo centro de artesanato, ao abrigo da Fundação Almerinda Malaquias, onde se podem comprar algumas das peças encomendadas pelo Anavilhanas Lodge. Antes, porém, não há quem resista ao cliché turístico do restauranteflutuante de Marilda Medeiros, no porto, para dar de comer aos botos que, todas as tardes, se habituaram a vir até aqui para reclamar o seu quinhão de peixe. Não é a situação ideal, mas é um compromisso em que todos, inclusive os golfinhos narigudos, ganham alguma coisa.
Belém, uma cidade que se devora
Com hotéis à disposição, houve quem achasse quase excêntrico o meu desejo de ficar numa pousada, a Portas da Amazônia. Só que, para lá do charme inegável da mesma, muitos desconhecem que a sua localização, junto à Catedral da Sé e em plena Cidade Velha, não só me permitiu passar rapidamente em revista curiosidades incontornáveis como a Casa das Onze Janelas ou o forte, como me deu um ensejo extra para me levantar cedo e caminhar até à beira-rio, passando pela Avenida Portugal, e ao Mercado Ver-o-Peso.
Elevado à categoria de atracção turística, o mercado, com uma estrutura de ferro importada de Inglaterra, é algo a que não se fica indiferente. Começa a funcionar logo de madrugada, altura em que os barcos atracam carregados de peixe, mas também de frutas (como o açaí ou o caju, conhecido no Brasil como castanha do Pará) e um sem-número de ingredientes produzidos no interior do estado, que, somados a raízes, essências, temperos, ervas, artesanato, comes e bebes, fazem dele um acontecimento diário.

A cidade de Belém do Pará, outra das portas de entrada na Amazónia brasileira, mantém até hoje traços lusos


Embarcações no porto, junto ao Mercado Ver-o-Peso, em Belém; chef Fábio Sicília, do Dom Giuseppe, faz parte da nova geração que está a dar maior visibilidade à cozinha amazónica; pátio da Pousada Portas da Amazônia. O buliço diário do concorrido Mercado Ver-o-Peso


Os mais famosos chefs do Brasil e não só, como Alex Atala (há vários anos no top 50 dos melhores do mundo) ou o supra-sumo espanhol Ferran Adrià, renderam-se à variedade dos produtos amazónicos, mas o facto é que muitos deles são facilmente perecíveis e o transporte por avião, a única solução, os tornaria excessivamente onerosos. Assim sendo, quem acaba por tirar maior partido de todo este imenso maná natural são os chefs paraenses.
Acabo por eleger três exemplos que têm em comum a juventude, mas também o facto de estarem a perpetuar, e a aprimorar, um legado familiar. Falo de Thiago Castanho, apontado como a “revelação” de 2010, que coloca ao serviço do Remanso do Peixe uma cozinha de pesquisa de onde saem pratos como o pirarucu fumado com leite de coco, banana, ameixa e caju; mas também de Fábio Sicília, do Dom Giuseppe, eleito chef do ano em 2010 e presença habitual em programas de televisão local, que, com mestria, funde a técnica italiana com ingredientes amazónicos (como é a sua receita de peixe no tucupi); ou ainda de Daniela, que, no Lá em Casa, dá continuidade às receitas criadas pelo seu pai, Paulo Martins (figura maior e grande divulgador da gastronomia amazónica, entretanto falecido). Aliás, foi no seu buffet de almoço que me deram a provar o famoso prato regional pato no tucupi, que, entre outras coisas, leva o jambu. Conhecido por agrião do Pará, é semelhante a uma couve azeda, com a particularidade de possuir uma flor que, quando trincada, provoca uma certa dormência na boca.
Claro que a capital paraense não se esgota apenas no paladar. Há um pólo joalheiro, que visitei no antigo presídio de São José, museus e igrejas, mas, a par do passeio de barco pelos igarapés e ilhas ao redor da baía (onde se avistam já exemplares de vegetação amazónica), são precisamente os parques botânicos e reservas mais afastados do centro da cidade que dão ao visitante a sensação de estar às portas da Amazónia.
De regresso ao centro, construído com o dinheiro dos barões da borracha, o Theatro da Paz não chega a ser tão imponente como o rival manauara, mas, assente na Praça da República, não passa despercebido e é, ainda hoje, palco da vida cultural da cidade. Mesmo em frente, o meu último hotel em Belém, o Hilton, haveria de se revelar providencial para, em pouco tempo, me ajudar a estabelecer uma rotina. Após a chuvada da tarde, de uma pontualidade quase britânica, passei a caminhar, sem me importar com as horas, pelas avenidas Presidente Vargas, Nazaré e Magalhães Barata, atravessando os bairros da Nazaré, de São Brás e passando por uma profusão de casarões caducos misturados com blocos de apartamentos, comércio popular e até relíquias como a Basílica de Nossa Senhora da Nazaré, ponto terminal, há mais de 200 anos e sempre no segundo domingo de Outubro, da impressionante procissão do Círio.

A capital do Pará ganhou, dentro e fora de portas, estatuto de Meca gastronómica amazónica e brasileira



Estação das Docas, na baía do Guajará; Daniela, que assegura a continuação do legado deixado pelo seu pai, grande divulgador da gastronomia amazónica, no restaurante Lá em Casa; e pato no tucupi do Lá em Casa, com o célebre jambu (agrião do Pará)

Gente, muita gente nas ruas, como se fosse um segundo despertar da cidade. A comida, sempre ela, tenta quem passa. Na Nazaré, frente ao colégio com o mesmo nome, Maria do Carmo Pompeu dos Santos é ponto fixo de romaria para quem quer provar o tacacá mais premiado de Belém (um caldo com goma, que leva tucupi e jambu cozido, rematado por camarões secos e salgados), mas a minha perdição há-de ser, mais adiante, na Travessa 14 de Março, o Mestiço (sorvete de açaí com tapioca) da Cairu. Não longe, em avenidas paralelas como a Conselheiro Furtado, espalhadas por esquinas e largos, outras pitanças fazem Belém merecer a fama de nova Meca da gastronomia popular amazónica e brasileira.
Como sempre acontece nos trópicos, ainda é cedo e já a noite espreita por uma nesga do céu. Na Estação das Docas, os antigos armazéns do porto foram convertidos num agradável pólo de lazer que inclui lojas de artesanato, restaurantes, bares, teatro e centro de exposições. Não resisto a mais um sorvete da Cairu e, munido de um Carimbó (cupuaçu e caju) vou-me sentar, já ao ar livre, a tempo de ver o grand finale do pôr-do-sol.
Corre uma brisa mansa mas suficiente para refrescar e, à medida que a noite avança como um borrão de tinta, o dorso leitoso do rio Guamá sucumbe à penumbra; na contra-luz dos lampiões acesos, os guindastes do porto, mantidos como decoração, envolvem na sua sombra cúmplice casais de namorados. Debruço-me no varandim ao longo do rio. Não as vejo, mas sei que, do outro lado da baía do Guajará, há ilhas e ilhotas de verdes mil. É o prenúncio da floresta às portas da civilização. A medirem forças. Não me interessa agora quem levará a melhor. É esta a última imagem que resolvo guardar da minha primeira viagem à Amazónia brasileira. E algo que me diz que, tão cedo, não me vou ver livre dela.
Agradecemos a colaboração da Embratur, da TAP Portugal e da TAM Airlines

COMO IR
Como não existem voos directos, a melhor solução é voar com a TAP (www.flytap.com) até Brasília, São Paulo ou Fortaleza, seguindo depois viagem com a TAM (www.tam.com.br) até Manaus e/ou Belém. As duas companhias são parceiras na Star Alliance (www.staralliance.com), o que permite efectuar a reserva de todo o percurso aéreo com a primeira, por valores que rondam os €1000.
INFORMAÇÕES ÚTEIS
Documentos necessários: passaporte válido.
Câmbio: R$1 vale cerca de €0,44. É fácil encontrar pontos ATM em Manaus e Belém.
Diferença horária: Manaus tem menos 5h00 do que Portugal continental (menos 4h00 no nosso horário de Inverno) e Belém menos 4h00 (menos 3h00 no Inverno).
Clima: é raro a temperatura máxima de Manaus cair abaixo dos 30ºC, mas o maior pico regista-se na estação seca, de Agosto a Novembro, altura em que a humidade é muito elevada. Em Belém, o calor é constante ao longo do ano, com aguaceiros ao final da tarde, que, somados a uma brisa, ajudam a refrescar.
Quando ir: a época de chuvas, de Dezembro a Maio/Junho, faz aumentar muito o caudal dos rios, que transbordam e inundam as florestas e matas, proporcionando passeios de barco por entre as copas das árvores submersas. Já na época seca surgem as praias fluviais. A procissão do Círio da Nazaré, em Belém, realiza-se no 2.º fim-de-semana de Outubro (a cidade fica lotada) e o Festival de Ópera de Manaus, no Teatro Amazonas, vai de Abril a Maio.


Amazônia Golf Resort by Nobile
Tropical, Manaus

ONDE FICAR
EM MANAUS:
Tropical
– Av. Cel. Teixeira, 1320 Ponta Negra, www.tropicalhotel.com
Afastado do centro, junto ao rio e à area recreativa da Ponta Negra, é um gigante, mas também um clássico para quem se hospeda em Manaus. Acusa a passagem dos anos, mas atrai pela variedade de opções, piscina com ondas e até um mini-zoo muito bem cuidado. Quartos duplos desde €260/noite.
ARREDORES, NA SELVA:
Amazônia Golf Resort by Nobile
– AM-010, km 64 www.nobilehoteis.com.br
A cerca de 1h00 de Manaus, permite já um primeiro contacto com a floresta, mas é mais um resort moderno, de última geração, virado para o lazer. Tem um campo de golfe de 18 buracos. Diárias desde €390 em pensão completa.
Amazon Jungle Palace – Rio Negro, Enseada do Tatu, www.junglepalace.com.br
Mais recente do que o conhecido Ariaú Towers, fica a 1h30 de lancha e seduz quem quer, já perto da selva, um toque de sofisticação urbana. O alojamento faz-se em dois edifícios modernos assentes em plataformas flutuantes. Diárias: €550 em pensão completa.
EM ANAVILHANAS:
Anavilhanas Jungle Lodge
– Acesso pelo km 1 da AM-352, 5,5 km, www.anavilhanaslodge.com
A viagem de carro pode demorar até 3h30, mas vale muito a pena. É, até ver, a mais charmosa de todas as propostas de alojamento na selva, à beira do rio Negro. Consegue ser rústico sem deixar de ser muito confortável e de providenciar boa comida e regalias como Internet por satélite. Funciona em regime de tudo incluído, até os passeios. Diárias desde €350 em pensão completa (consultar pacotes)
EM BELÉM:
Hilton Belém
– Av. Presidente Vargas, 882, www.belem.hilton.com
O seu grande trunfo é a localização, na principal avenida e bem de frente para o Theatro da Paz e para um parque. Vale a pena pedir um quarto de categoria superior, pois foram remodelados e ficaram mais confortáveis. Quartos duplos desde €180/noite
Pousada Portas da Amazônia
Belém
– Rua Dr. Malcher, 15 (Cidade Velha), www.portasdamazoniabelem.com
Depois de São Luís, a Portas da Amazônia assentou arraiais num velho casarão do centro histórico de Belém, de frente para a catedral. Com apenas 9 quartos, é a mais charmosa da cidade e conta até com um terraço interior e um óptimo restaurante. Quartos duplos desde €60/noite
ONDE COMER
EM MANAUS:
Banzeiro
– Rua Libertador, 102 (Adrianópolis), tel. 3234 1621. Abriu em 2009 e fica cheio aos fins-de-semana. O responsável é o jovem chef Felipe Schaedler, que trouxe para a capital do Amazonas uma nova abordagem para a típica cozinha local.
Tapiri – Rua Jacira Reis, 650 (São Jorge), tel. 3671 2008. O seu afamado café da manhã (pequeno-almoço) regional, servido aos fins-de-semana, é uma atracção à parte, pois o festim inclui bolo de macaxeira, mungunzá, cuscuz, pamonha, mingau de banana ou o x-caboclinho. No total, são perto de meia centena de comidas e bebidas à disposição.
EM BELÉM:
Remanso do Peixe
– Tr. Barão do Triunfo, 2590, casa 64 (Marco), tel. 3228 2477. Fica um pouco fora de mão, mas a incursão justifica-se plenamente. Thiago Castanho segue a tradição familiar, mas é apontado como uma revelação enquanto chef e brilha na nova cozinha regional.
Lá em Casa – Estação das Docas, tel. 3212 5588 Paulo Martins, um dos pioneiros na divulgação da gastronomia amazónica, faleceu recentemente, mas a sua filha, Daniela, assumiu o comando da casa em matéria de cozinha regional.
Dom Giuseppe – Av. Cons. Furtado, 1420 (Batista Campos), tel. 4008 0001. O chef Fábio Sicília é uma estrela em ascensão, muito requisitado dentro e fora do Brasil, pois conseguiu fazer do Dom Giuseppe uma referência de cozinha italiana e regional. Possui também uma loja de vinhos.
PASSEIOS
Primeiro conselho: não fique apenas em Manaus e reserve alguns dias para ficar num hotel de selva. A partir da cidade, é “obrigatório” realizar o passeio de barco para testemunhar o encontro dos rios Negro e Solimões. Dura meio-dia, custa cerca de €50 e inclui visitas a comunidades ribeirinhas e caminhada na floresta. Se ficar alojado no Anavilhanas, o passeio no arquipélago está incluído (se não, conte com 8h00 e um custo de €130). Em Belém, há um passeio de barco que dura 3h30 e custa €40, permitindo passar por algumas ilhas e pelo canal de ligação ao rio Acará.
MAIS INFORMAÇÕES
Consulte os sites da ManausTur (www.manaus.am.gov.br) e da BelémTur (www.belem.pa.gov.br/ belemtur). Guias: a edição de 2011 do Guia Quatro Rodas, actualizado todos os anos, é a que fornece informação mais completa.

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