terça-feira, 4 de maio de 2010



No século I, Adriano mandou construir um teatro em Fava. Tudo apontaria para que o tivesse feito em Edirne - a cidade que, em tempos romanos, teve o seu nome: Adrianópolis. Mas foi aqui, do outro lado do rio, que o teatro nasceu, e possivelmente algum livro de história, que não li, dirá porquê. Não há, à entrada, grandes explicações sobre este monumento, cujo estado de conservação é razoável. Os terramotos que desde sempre assolaram a Turquia, e que foram varrendo para baixo do tapete a vaidade de reis e imperadores, ao mesmo tempo que dizimavam homens e cidades, encarregaram-se provavelmente de deslocar-lhe algumas pedras, partir colunas e estátuas, alisar frisos e baixos relevos.

A memória de Adriano deu-se bem em várias regiões da Turquia. Em Agosto de 2007, uma equipa de arqueólogos liderada por Marc Waelkens desenterrou pedaços de uma estátua monumental do imperador em Sagalassos, no sul do país, por baixo de uma casa de banhos. Calcula-se que medisse 4 a 5 metros de altura. As primeiras imagens da escavação mostram uma cabeça enorme coberta de caracóis de pedra a surgir do meio da terra e da poeira, com os olhos redondos e polidos de todas as estátuas.




O teatro de Fava foi construído à maneira grega, na encosta de uma colina, e das filas mais altas consegue-se ver o rio. O caminho que lhe dá acesso está rodeado de ameixieiras e castanheiros e, nos dias em que há espectáculos, vendedores ambulantes. Comprei uma barra de nógado de amêndoas e uma garrafa de água (dos bolos de abóbora, nem sinal) e entrei: a festa era do povo, o espectáculo era grátis. Sentei-me a meio do teatro, perto de um dos corredores de acesso para o caso de querer ir embora a meio. O cão estava comigo. Até começar o espectáculo, Shakira, escondida pudicamente dentro do amplificador, foi a rainha da festa.

Os habitantes de Fava começavam a chegar, famílias inteiras falando ao telemóvel com outras famílias inteiras que provavelmente estavam para chegar também. A iluminação incidia sobre a colunata ao fundo do palco, branca como osso de choco, e eu gostava de ter levado um casaco, porque o vento divertia-se a correr a todo o comprimento dos degraus, dando pontapés em flores secas, papéis velhos e pontas de cigarros.

Uma rapariga sentada ao meu lado olhava-me com alguma insistência, e eu não sabia se devia fingir que não reparava ou se devia corresponder. Finalmente, apanhou-me o olhar e disse, ansiosa: "You can not see this in Europe!". Sorri-lhe, pensando que, na verdade, eu estava na Europa, mas curiosa por saber o que era afinal o "espectáculo de som e luz" anunciado à entrada. Os holofotes da plateia apagaram-se, e um grupo de adolescentes entrou, fazendo uma dança acrobática com faixas de pano brancas, pretas e verdes, ao som de música instrumental. Um jogo de luzes escondia e revelava as dançarinas ou ginastas, aproveitando o efeito da colunata ao fundo da cena, que surgia da noite, vertical contra os panos que se desenrolavam no ar. O público gritava e aplaudia a meio de cada exibição, levantava-se, pedia bis, chamava pelo nome da irmã ou prima que participava no espectáculo. A rapariga tinha razão: não havia daquilo na Europa. E, no entanto, eu conseguia até imaginar que, nos tempos de Adriano, e em todo o tempo que o local fora usado para espectáculos de teatro, o público agisse de forma não muito diferente. Por baixo de nós, camadas mais antigas de espectadores romanos e bizantinos aplaudiam, levantavam-se, comiam cerejas e cuspiam os caroços para o chão. Agora era a nossa vez; daí a alguns anos ou séculos talvez um terramoto arrasasse aquele lugar, misturando mais uma vez homens, casas e estátuas numa camada de terra pedregosa que as águas do Maritsa, num Inverno de cheias, haviam de alisar.

Numa cidade como Fava eu podia apreciar o convívio de todos estes vestígios de cada tempo, virando costas à obrigação de inventariar o valor histórico deste ou daquele elemento, isolado e preservado, museificado. Andando pelas ruas, depois de sair do espectáculo, via assomar à superfície pedaços de muralha e pedregulhos de data incerta, que podiam ter cem ou mil anos; para um homem ou mulher que habitasse a cidade desde a infância, aquele muro fazia parte de um relevo e de um mapa que não tinham cronologia a uma escala histórica; tal como o teatro, ou a torre bizantina. Eram heranças orgânicas, como um nariz comprido ou um sinal no ombro direito que, por um cálculo genético por vezes caprichoso, atravessam gerações incólumes, sem que a nossa memória deles ultrapasse o tempo em que vivemos: não é o nariz que herdámos do nosso antepassado grego, é o nariz que herdámos da nossa mãe. Quem vem de fora tem guias, mapas, organizações amplas do tempo e do espaço que são alheias àqueles que ali acordam, comem, fazem o seu percurso até ao trabalho, passeiam ao fim-de-semana à beira do rio e dormem à noite em cobertores com tigres. Fava não era, como outras cidades históricas maiores e mais célebres, um recreio para turistas: não tinha placas nem percursos assinalados que me fixassem um sentido. Era, naquele meu passar o olhar e a mão pelo seu pêlo macio, apenas o que dela assomava à superfície.

E eu, sem mapa nem história para além das indicações do Nurettin, ia seguindo o cão, que me levou de volta ao rio, à praça em frente à ponte, passando por prédios velhos de fachada gasta, filas de carros estacionados, o claro-escuro das mesas de café sob as arcadas, por terrenos vazios onde se acumulavam restos do dia-a-dia, flores amarelas, limites do mundo conhecido, pedras que sobravam da cidade, entre as quais, um dia, talvez regressasse à superfície a mão branca do imperador.


1 comentário:

Mara disse...

Jorge!
Gostei muito dessa tua postagem. Eu não tinha conhecimento a respeito desse assunto.
Parabéns! Seu Blogg está bem diversificado.
Bjss