segunda-feira, 26 de abril de 2010



Aprendi português na escola, mas a intimidade começou a forjar-se antes, nos discos de José Afonso. E nos de José Mário Branco, Fausto Bordalo Dias, Sérgio Godinho, Chico Buarque. Mas primeiro, antes de eu saber dizer os nomes e distinguir uns dos outros, música em português era Zeca.

Eu era muito criança e não tinha aquela profundidade toda, nem noções de tragédia ou de glória, nem uma ligação relevante à memória do meu país. A revolução, o mundo e eu a começar éramos uma e a mesma coisa. O Alentejo largo, tórrido ou gelado consoante os meses, os vários cheiros da terra, a alegria com que todas as pessoas à minha volta recomeçavam nos dias novos, limpos do cheiro a mofo do salazarismo e, no Verão, as canções e as guitarras, o mar, a minha mãe.




Em casa havia música e os despertadores de fim-de-semana eram os discos do Zeca, que nos arrancavam ao sono a partir da sala. Outras vezes, noite avançada, eu adormecia nos concertos, que naquela época eram também um pouco comícios.

A música ouvia-a com os dias, nos dias. As letras animavam-me ou entristeciam-me, punham-me a dançar, a pensar e a fazer perguntas. Nas respostas vinham outras perguntas, histórias do meu país e mais música, tudo em peças para montar, mais ou menos como nos legos, que eu ia fazendo enquanto ouvia as canções.

Os anos passaram, a música foi fazendo sentido. Quando fiz dez anos, passei a poder a usar o gira-discos da sala das refeições, tecnologia intermédia entre o gira-discos de malinha do meu quarto, quase um brinquedo, e a aparelhagem a sério da sala de estar. Com essa permissão, veio o acesso aos discos dos meus pais.




Foi então que descobri Zeca Afonso por minha iniciativa, sozinha, consciente. Durante os meses do Outono, quando não tinha aulas à tarde, punha um disco a tocar, sentava-me à mesa com o álbum aberto e um dicionário. Ali estava a primeira música que tinha conhecido e eu capaz de perceber e de me entusiasmar. Os dias escureciam, as palavras abriam-se, o mundo crescia, e eu não queria ter outro país, nunca mais quis.

A variedade da música, no tempo que veio depois, tem servido para perceber o quanto a música de Zeca é, antes dos poemas sem medo que encheram os portugueses de coragem e esperança, música grande, da melhor que posso ouvir em qualquer lugar do mundo. Continuo a ouvi-lo porque não saberia deixar de o fazer e continuo a ouvi-lo porque tudo o que peço à música está em Zeca. E às vezes regresso intensamente para o redescobrir. Zeca é a fonte essencial do meu ânimo, a água mais pura que conheço. Quando os meus regressos à sua música e aos seus poemas terminam, percebo que estou afinada, reequilibrada, outra vez no lugar, que já não me vou perder durante algum tempo. O meu país é esta música.


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