segunda-feira, 26 de abril de 2010



Sobre os seus impressionantes 100 anos de vida, completos este mês, o arquiteto Oscar Niemeyer desconversa: “é uma bobagem!”. A profusão de artigos, revistas, publicações e matérias para a TV poderiam até nos deixam pouco a dizer; mas a vida e obra do homem que se dedica há 70 anos a uma arquitetura - de extrapolação dos limites da forma e da função para invadir a poesia e a humanidade - consegue ainda ser uma força profusa do gênio e da pessoa por trás e entre as linhas.

Dono de uma personalidade doce e incisiva, características aprofundadas pela sabedoria do tempo, a história do artista fluminense intercruza-se com a da política, da literatura, da fotografia e das artes plásticas nacionais em momentos que já estão sob o domínio de todos, do intelectual ao popular. O que mais toca é mesmo isso: a figura universalizada do homem, suas palavras, convicções e filosofias, seu senso de pertença à vida. E foi justamente esse o elemento chave das comemorações que ocorreram neste último 15 de Dezembro na casa que ele próprio projetou, em 1952, na Estrada das Canoas, Rio de Janeiro. Concedeu entrevista, foi disputado pela imprensa e fumou charutos. Não assoprou as 100 velinhas por achar o bolo, que tinha o formato do MAC, cafona. Num arroubo de modéstia, disse ser uma pessoa normal: “não sei porquê durei tanto” para, em seguida, completar gabando-se: “cento e dez é fácil!”.

Na falta das palavras certas e no medo de me tornar repetitiva, selecionei aqui uns trechos do encontro armado pela revista Bravo! em 1997: os poetas Ferreira Gullar e Bruno Tolentino em conversa ao redor do arquiteto centenário no escritório da Avenida Atlântica entre muita fumaça e cafeína.

Gullar: Essa foto de Luis Carlos Prestes, sobre a sua mesa, de 1935, é da época da Intentona Comunista
Tolentino: Ele tem um ar lírico, hollywoodiano...
Niemeyer: É, ele tinha acabado de levar um soco na cara. Assim que saiu de cana! (risos)
Tolentino: Eu queria que você falasse sobre as relações entre as várias formas de arte.
Niemeyer: Acabei de fazer o Memorial da Coluna Prestes... (estende o desenho). Eu queria incorporar uma estátua do Prestes, que era um sujeito frágil, e o escultor me saiu com um homenzarrão desse tamanho! Eu sempre quis misturar as artes, como na Renascença. Na Pampulha, chamei o (Cândido) Portinari, o (Alfredo) Ceschiatti, os azulejistas... O Juscelino, prefeito de Belo Horizonte, já era como aqueles príncipes do Renascimento. Se tivesse tido mais tempo em Brasília, ia mandar pôr afrescos naquilo tudo, e eu ia apoiar...



Gullar: Mas a responsabilidade é do purismo da arquitetura. A coisa moderna teve uma tendência a excluir. Veio a idéia de que bonito era aquela parede pura, sozinha...
Niemeyer: E é! Mas adoro paredes pintadas, tetos com afrescos...
(...)
Gullar: (...) Quando você começou, naquele período, como andava a arquitetura brasileira, o que é que existia?
Niemeyer: Olha, havia uns grupos, três ou quatro, não sei, que já trabalhavam na base daquelas influências... na linha do Corbusier. Levávamos tudo aquilo a sério, como um catecismo. Mas ainda não havíamos “sentido” a essência da obra dele. Para mim, a verdadeira influência veio de conversar com ele... Quando ele me disse: “Arquitetura é invenção!”. Essa palavra... bem... foi uma coisa muito importante para mim.
(...)
Gullar: Como é que nasce a inspiração para um projeto assim? [referem-se ao esboço da Catedral de Niterói]
Niemeyer: Tomo conhecimento do programa, do lugar, do orçamento. Aí deixo a idéia ir buscar a invenção. Então, de desenho em desenho... O fantástico é simples. Quando desenhei o bastante para configurar o projeto, ponho-me a escrevê-lo; se encontro qualquer dificuldade em deixar claro o que inventei, algo está falho no projeto, e eu volto ao desenho.
Gullar: Então é escrevendo que você entende o que fez? A linguagem é assim tão importante?
Niemeyer: Tudo é linguagem...No Museu de Niterói, por exemplo, a coisa “falava”: um promontório, um pequeno orçamento, tudo dizia: simplicidade... fiz um cogumelo branco com um lago em torno e o mar lá embaixo...




(Niemeyer saca um papel de uma gaveta e hesita...) Audácia minha mostrar isso a dois poetas. Não é poesia não, gente, é uma bobagem que eu rabisquei em Argel... (Gullar confisca-lhe o papel e lê em voz alta)
Gullar: Estou longe de tudo,
de tudo o que eu gosto,
da terra tão linda
que me viu nascer.
Um dia eu me queimo,
meto o pé na estrada,
é aí no Brasil
que eu quero viver;
cada um no seu canto,
cada um sob um teto
a brincar com os amigos,
vendo o tempo correr.
Quero olhar as estrelas,
quero sentir a vida,
é aí no Brasil
que eu quero viver.
Estou puto da vida
(essa gripe não passa!)
de ouvir tanta besteira,
não me posso conter.
Um dia eu me queimo
e largo tudo isto,
isto aqui não me serve,
não me serve de nada,
a decisão está tomada,
ninguém vai me deter.
Que se dane o trabalho
e este mundo de merda,
é aí no Brasil
que eu quero viver!
Gullar: Exílio é isso: estou aqui e meu lugar é lá, o sujeito explode!
Tolentino: Agora o Niemeyer me sai com um poema! (...) E o que é aproveitar a vida?
Niemeyer: É o contrário do egoísmo. É Cuba, o risco, o sonho... O egoísmo mata, apequena. Empobrece tudo. É a verdadeira pobreza. O homem nasce e morre, tudo começa e acaba. O chato mesmo é não saber como vai acabar...

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