sábado, 10 de abril de 2010

in "PALÁCIO DO RIO DE JANEIRO


Era certo deles não terem esbarrado por aí, nalgum lugar: em 1853 Debret já estava morto, mas a província havia mudado bem pouco desde a última prancha que ele esboçou. Lembro que o Largo do Palácio ainda não havia sido aterrado e, onde agora há uma passagem subterrânea para os ônibus que saem a toda velocidade do terminal rodoviário, era simplesmente mar, eram os barcos pequenos atracando nas escadinhas junto ao luxuoso chafariz e os negros iam descarregando os mais diferentes tipos de produtos, sempre com cestos na cabeça e sem camisas. Era ali no parapeito do cais que muitos homens se sentavam no final da tarde pra um refresco. Dona Felicidade Maria vendeu metade da banca de doces em menos de meia hora correndo de um lado para o outro afim de exterminar com a outra metade. Ajudei Silvério a preparar a moringa com água e lá partiu ele pontuado pelos gritos de "ó moleque!": é que sentiam sede, não sei se por conta do açúcar ou por conta da pimenta do jantar que era excessiva. Na dúvida, despedi-me, de Felicidade, de Silvério e dos pretos barbeiros que, àquela hora, repousavam coçando a nuca com uma pena.
Fui mesmo à pé, tomando cuidado com os cavalos dos coches porque tenho medo de um atropelamento, sempre tive. A Catedral ainda não sonhava com a reforma e, muito menos, falavam em redecorar o Largo e a Rua Direita de forma que ficasse como era na época da vinda da Corte Portuguesa. Penso hoje que podia ter dito baixo isso a um, a dois, ou até três pessoas da mais severa confiança que conheci naqueles andares infinitos, oitocentistas, pelo que ia ser hoje uma cidade cinza-verde e fuligem azul-céu-claro. A missa ia alta quando desisti de refletir só, parada, e embrenhei ali pela Direita, digo, Primeiro de Março. Trinta anos depois, Felicidade morria por complicações no fígado lá na Santa Casa de Misericórdia; deixava Silvério livre em testamento, uma quantia ao seu companheiro, o preto livre Guilherme e outra ainda maior para seu neto, agora sem pai, mãe, nem avó, nem escravos - as duas cozinheiras velhas da casinha foram também liquidadas.
Felicidade Maria antigamente atendia só por Felicidade Mina, dizia que era de lá, da Costa da Mina mas, ao contrário da maioria de nós e até de mim - confessores de fila -, dizia sempre tão pouco sobre... me restou nesses anos todos ficar imaginando. Já tinha ouvido certa vez, numa dessas manhãs em que lavavam roupas no chafariz central lotado que ela tinha chegado nova, mas nova mesmo, à cidade, mais pro sertão e, já na fazenda dum certo Pedro, engravidou. Tempos depois engravidou novamente e, não posso atinar com detalhes como foi, saiu de lá com duas meninas: uma no colo e a outra arrastada pela mão que não queria ir, e ainda descalça, por conta da madrinha que ficava. A conta total havia ficado em quase dois contos de réis: ela, a filha maior e a recém nascida, que ia de graça mesmo, por brinde.
Não sei que Felicidade via aqui, nem sei o que mais havia pra ver depois duma travessia Atlântica, assaltada quase que pessoalmente pelo Diabo, como que arrancar uma planta pela raiz. E isso digo sem receio de soar buscando palavras mais sentimentais. Uma planta ceifada, meu Deus, Felicidade, os homens de negócios que tinham todas as cores, o Diabo, e como foi que ainda as forças deram quando o tumbeiro foi amarrado ali no cais, lá no Porto? Tumbeiro era o nome desses navios, por conta dos mortos que permaneciam às vezes ali espremidos, tocados escondidos nas frestas. O que foi que viu quando saiu de lá do porão e de repente viu tudo claro? E de repente viu tanta gente correndo dum lado ao outro pontuando os gritos de "ó moleque!". E aqueles morros verdes, mais verdes que toda uma existência de matos, de matas, por todos os lados. O que será que ela viu? Porque ando pelas pedras que sei que ela pisou e me falta a memória do que terá sido. Pouco depois a criança mais nova morreu, muito antes ela já não se chamava mais Felicidade Mina, nome dado pelos administradores do certo Pedro; tinha escolhido que ia ser Felicidade Maria, e Maria da Conceição porque no ano de 53 o dogma da imaculada concepção da Virgem Maria havia sido alardeado com festa pelas ruas próximas à igreja da Glória. Eram tanto mais católicos...


Felicidade Maria da Conceição desceu da Rua Princeza dos Cajueiros onde tinha ido visitar alguns aparentados, como considerava com toda fé aquelas pessoas, e, ainda com o céu claro, fora procurar Bernardino Ferreira, por quem tinha confiança e para quem, ainda na presença de outros, começou a ditar seu testamento à Rua Primeiro de Março número 4. Não sabia ler, tampouco escrever, achou bonitas as letras e foi como se cumprissem o que devia ter cumprido. O túmulo ia ser de mármore e foi no cemitério de São João Batista. Paulina morreu anos antes, do pulmão, a outra filha, a que chorara descalça de saudades da madrinha quando saiu da fazenda, ou teria sido um sítio? Sempre imagino que saíram de Jacarépagua, ninguém, exceto eu, pensava que quarenta minutos dali dariam de cara com uma réplica iluminada da Estátua da Liberdade que enfiaram em frente ao New York City Center. Paulina foi acompanhar o marido, o Silvares. Felicidade cochichou num canto que era a vontade de Deus tudo, tudo, mas nunca acreditei.
De qualquer forma não conseguia tirar os olhos dali,
da Catedral onde ela havia passado num sinal da cruz rápido feito com os dedos no peito. E se mais alguém soubesse? A missa terminou e tirei a câmera fotográfica novamente de dentro da bolsa, nem que fosse pela última vez. Nas duas polegadas e meia estava a carta que alforriou minha Felicidade mediante a tanto dinheiro que de onde foi que'la tirou? Pedro Blanche pediu ao vizinho que assinasse (problemas na vista), que as autoridades Imperiais reconhecem agora ali uma mulher que se auto governaria como se de ventre livre tivesse saído, como se a tivessem sacado dum outro útero além daquele africano, outro.
Ela saiu de lá sem olhar para mais nada, eu sei. Continuou nos seus doces, separou num bornalzinho o dinheiro do Guilherme, aquele seu companheiro na idade. Fez outros rogos à Deus e dormiu pela exaustão apenas, se não ficaria acordada, se não me diria tudo. Nunca quis ver a cidade que ela viu, sentei no banco, na calçada, na Ipanema e escrevi isso no bloco. A anotar era só isso. Uns meses atrás, falamos ao telefone tempo o suficiente para sentir depois as orelhas doendo terrivelmente: falar da cidade. Nunca soube por onde começar as memórias do que não sei, do que não quis lembrar, de onde só quis ficar deitada no chão, de pedras de qualquer tamanho como que esperando algum passo que me contasse as histórias que não vivi. Foi tudo muito demorado, foi disso tudo os meus atrasos de entrega das invenção. Mentir nunca é rápido. Nem por isso menti, nesses dez textos, bem.

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